Íshvara Pranidhána - Simão Monteiro

O significado e o contexto

Segundo António Renato Henriques [1], íshvara pranidhána traduz-se como “depositar diante do Senhor” (íshvara = Senhor, pra = diante, nidhána = depositar). Íshvara pranidhána pode ter vários significados conforme os contextos mas são sempre derivações de: “entrega ao Senhor”, “aceitação da vida”, “dedicação a todos os actos”, “auto-entrega”, “renunciar aos frutos da acção (pois todo o acto é dedicado a Íshvara)”. No bom português costuma dizer-se “que seja o que Deus quiser”, na Bhagavad Guitá aparece-nos a expressão “bhavitam bhavati eva”: aquilo que tiver que ser será.

Íshvara pranidhána aparece nos Yoga Sútras de Patáñjali como sendo um dos cinco niyamas que, por sua vez, são um dos oitos angas (partes) do Ashtanga Yoga codificado pelo sábio. Esses oito angas são: yama, niyama, ásana, pránáyáma, pratyáhára, dháraná, dhyána e samádhi. Os cinco yamas e cinco niyamas são a ética do Yoga, os pilares onde assenta a prática e a vida do yogi. Traduzimos niyama como prescrição, são os elementos de auto controle que dizem respeito à vida interior do yogi e à forma como se relaciona e harmoniza com a vida em geral e com a verdade transcendente.

Como último dos niyamas aparece-nos íshvara pranidhána que, pessoalmente, gosto de traduzir como “entrega à vida”. O que se entrega ou deposita perante a vida ou se preferirmos, perante íshvara, são as próprias acções. Mas antes de nos debruçarmos sobre íshvara e como aplicar este conceito na prática do Yoga e na própria vida, vejamos o seu contexto nos yoga sútras.

“A supressão [da identificação com os vrittis consegue-se através da] prática constante e do desapego.” Yoga Sútras, I-12 [2]
“[O samádhi pode também obter-se] pela entrega a íshvara.” YS, I-23

Patáñjali começa por nos ensinar que através de abhyása (prática constante) e de vairágya (desapego) se consegue o estado de Yoga ou samádhi (segundo o comentador Vyása: Yoga é samádhi), e que esse samádhi está próximo para aqueles que o anseiam muito. Em caso de insucesso nessas duas práticas ou falta de motivação, ele apresenta outro meio, íshvara pranidhána, para chegar ao mesmo fim.

Mais à frente diz-nos: “esforço sobre si próprio, auto-estudo e entrega a Íshvara constituem o Kriyá Yoga.” YS II-1
Patáñjali apresenta-nos outra prática para chegar ao mesmo fim, o kriyá yoga, e novamente íshvara pranidhána faz parte das técnicas.

Finalmente, Patáñjali propõe ainda o Ashtanga Yoga, sistema pelo qual ficou conhecido, para destruir aquilo que nos condiciona e nos faz sofrer e assim levar-nos à libertação. Como já referi antes, também aqui íshvara pranidhána aparece, fazendo parte dos niyamas.

É de realçar o facto de íshvara pranidhána, a “simples” entrega à vida, aparecer nas três práticas apresentadas por Patáñjali como meio para chegar ao Yoga, apesar da dedicação e esforço que os yogis empregavam ao utilizar a grande variedade de técnicas ao seu dispor para se libertarem.

O conceito de Íshvara

“Íshvara é um Purusha especial, incólume às aflições, aos resultados das acções ou às latências provocadas por elas.” YS, I-24
“Não estando limitado pelo tempo, Íshvara é o guru dos mais antigos mestres.” YS, I-26

Íshvara é a potencialidade da consciência individual (purusha, o si-mesmo individual). Ele funciona como um arquétipo do yogi, uma referência ideal a ser seguida por quem se aventura na senda do Yoga. Verificando que os yogis daquela época recorriam a íshvara para obter o samádhi, Patáñjali não podia deixar de o referir nos seus yoga sútras. Assim, o sámkhya (filosofia naturalista) apresentado nos sútras de Patáñjali assume uma conotação dualista, afastando-se um pouco do sámkhya ateísta que não reconhece a existência de íshvara.

Íshvara é então um purusha especial, não afectado pelo tempo nem espaço, não influenciado pela angústia e suas fontes (ignorância, egotismo, paixão, aversão e apego à vida). Suas acções não produzem reacções, não guarda impressões, é sempre livre e consciente da sua liberdade. A grande diferença entre íshvara e purusha (individuo) é que enquanto íshvara não é dominado pelo poder de projectar de máyá (a ilusão de nomes e formas), purusha sim, ao conceber-se como uma personalidade egóica, um conjunto mente-ego-corpo limitado.

No advaita vedanta (corrente não-dualista), íshvara pode ser entendido como o absoluto não-dual associado ao seu poder de velar (máyá). Para o Tantra ele é o bindu, ponto a partir do qual o universo se expande e se recolhe.

Mas mais importante que a especulação que se possa fazer em torno do significado de íshvara, o importante mesmo é a prática de íshvara pranidhána por parte do praticante. Ao fazer esta entrega ou devoção a íshvara, a essa ideia de não-limitação e não-ilusão, a senda do Yoga torna-se favorável ao yogi e este realiza o seu objectivo, o de libertar-se ainda em vida.

Íshvara pranidhána no sádhana e no dia-a-dia

Sendo íshvara pranidhána uma prática que leva ao samádhi (ou se preferirmos ao Yoga) por si mesma, como encaixá-la na nossa prática pessoal?

O primeiro que temos que entender e perceber é: a quem se destina a prática, quem a realiza e quem a desfruta? Os mestres ensinam-nos que podemos escolher as acções mas não os seus frutos e que na prática somos aquele que observa e testemunha (sakshi) as experiencias e seus efeitos acontecerem.

Ao praticarmos não devemos estar presos a qualquer expectativa nem tão pouco apegarmo-nos aos resultados que possam surgir das técnicas. Íshvara pranidhána acontece quando entregamos o fruto da prática ao verdadeiro agente, quando aceitamos e compreendemos que não podemos mudar o passado nem prever o futuro. Ao entendermos que existe uma inteligência superior e universal que cuida e faz fluir a vida, então podemos nos entregar por completo.

Na minha opinião a técnica yoganidrá (relaxamento yogi) é aquela em que mais facilmente podemos aplicar e entender o conceito de íshvara pranidhána. Essa técnica que vai muito além do relaxamento depende basicamente da nossa capacidade de nos entregarmos e abandonarmos. É como se fossemos uma bóia ao sabor da maré, onde o movimento voluntário cessa e encaixamos no fluir natural do cosmos.

Tudo se faz e tudo sucede por si mesmo. Assim, o ser humano em nada toca e nada lhe afecta, ele não gera acções. Quando entendemos que não podemos prever os resultados e que a vida tem seu próprio rumo, aceitamos as coisas como são e vivemos de forma mais desapegada (vairágya).

Íshvara pranidhána implica também shraddha (confiança). Confiar que tudo está bem, confiar no processo de existência para podermos nos entregar sem medos nem receios. Confiar também no professor de Yoga que escolhemos para nos ensinar e nos próprios ensinamentos milenares que nos são passados.

Tudo isto muda a nossa obsessão pelo “eu”, pelo ego que se assume tantas vezes como o responsável pelas acções e cobra seu desfrute. Praticar íshvara pranidhána torna-nos mais humildes, esvazia-nos daquilo que não interessa e nos condiciona deixando espaço para a serenidade e paz.

Ao longo dos anos que pratico Yoga fui me apercebendo que realmente há muito pouca coisa que controlo, se é que controlo algo. O coração bate, o sangue corre, a respiração acontece, os pensamentos sucedem-se, sem que eu faça muito por isso, a vida simplesmente acontece. E assim também acontece com o meu sádhana diário. As técnicas vão se sucedendo, relaxo quando não consigo executar algumas delas mas também quando o domínio acontece. É muito interessante e revelador para mim quando por vezes caio de um ásana (postura) que julgava já ter dominado na perfeição ou quando alguma parte do corpo se lesiona por falta de bom-senso-ánanda. Isso recorda-me do que é essencial e torna-me mais humilde.

Nas palavras de Feuerstein [3]: “A devoção e entrega deixa-nos abertos à sensação de que há algo cuidando de nós. Percebemos o vínculo que interliga todas as coisas e sustenta todo este universo.”

[1] António Renato Henriques. Yoga e Consciência, Editora Rígel, Porto Alegre, 2001.

[2] Pedro Kupfer. Formação em Yoga, módulo 1, Yoga Bindu, Mariscal 2006. Todas as traduções dos Yoga Sútras foram retiradas da mesma fonte.

[3] Georg Feuerstein. A Tradição do Yoga, Editora Pensamento.

Outra bibliografia:

Pedro Kupfer. Yoga Prático, Fundação Dharma, Fevereiro 2001, Florianópolis.

Sesha. Advaita Vedanta, Gaia Ediciones, 2005.

Retirado de www.yogabindu.blogspot.com com a permissão do autor. Simão Monteiro ensina Yoga desde o ano de 2001. Fez formação em Swásthya Yoga (Lisboa, 2001 e 2002). É professor de Yoga certificado pela APIPSY, Prof. Edson Moreira (Barcelona, 2003 ). Ensinou em diversos centros e ginásios de Portugal (2001 e 2002) e Espanha (2003 e 2004) e fez viagens de estudo à Índia e ao Brasil (2004 e 2005). Organiza e orienta workshops, retiros e encontros de Yoga desde 2005. Fez o 1º Módulo de Formação em Yoga, com o Prof. Pedro Kupfer (Portugal, 2008). Participou no retiro de Vedanta com o Swami Dayananda Saraswati (Portugal, 2008). Pratica Yoga com o Prof. Nuno Cabral (desde 2008). Ensina Hatha Yoga Tradicional em Almada, Cascais e Lisboa, desde 2006.

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