Amrita Bindu Upanishad - João C. Gonçalves

Como gênero de discurso devotado ao ensinamento sagrado, as Upanishads consistem em textos dedicados à transmissão de um saber capaz de modificar essencialmente a condição existencial daqueles interlocutores a quem se dirigem. Levando em conta tanto a qualidade do saber ali depositado, isto é, o seu conteúdo, como a forma com que esse conteúdo ali está arranjado, esses textos encontraram um espaço de elevada estima dentro do hinduísmo. Juntamente com os Vedas, os Brahmanas e os Aranyakas, eles vieram a ser consideradas parte do corpo revelado (Shruti) da tradição.

Quanto a sua autoria, ocorrem, nessas composições, muitas referências a grandes preceptores e também a linhagens que podem ser associadas aos Vedas, mas essas informações não contribuem para personalizar a criação desses textos; ao contrário, a presença de nomes célebres propicia intervenções do universo mítico sobre a imagem do contexto de produção dos ensinamentos das Upanishads. Ocorre, a partir dessa intervenção de personalidades do mundo mítico, uma validação da autoridade dos saberes propostos por essa classe de textos. Por conseguinte, muitas obras foram compostas sob esse modelo e nomeadas como Upanishads, de modo que pudessem receber o mesmo prestígio concedido aos seus precursores. Dessa forma, também ocorre, nos textos em análise, algo que é comum no conjunto da literatura sânscrita: a diluição dos traços de autoria em proveito de vincular as produções literárias a gêneros ou antologias que dêem autoridade e permanência aos textos.

Dito isto, podemos então caracterizar as Upanishads sob o seguinte perfil: textos da literatura sânscrita compostos em diálogo polêmico com a tradição ritualista védica, que estabelecem um saber capaz de libertar o ser humano do ciclo mundano, dirigidos àqueles que aspiram a uma condição existencial sagrada, compostos por mestres inspirados, dignos de transmitirem um saber que pertence à ordem da revelação.

Tradução

Om
A mente, explicam, é biforme: ou é pura ou então é impura;
ditada por desejos é a impura; livre dos desejos é a pura. (1)

Ensinam que a mente é instrumento de prisão ou de libertação;
a submissa aos objetos aprisiona, a insubmissa liberta. (2)

Sendo a libertação favorecida pela mente insubmissa aos objetos,
insubmissa aos objetos deve ser a mente do aspirante à libertação. (3)

Isenta do jugo dos objetos, a mente é refreada no coração
e então atinge o estado não mental, que é a esfera suprema. (4)

Deve mesmo ser refreada de modo a ser dissipada no coração;
é isso a gnose e a libertação e todo o resto é noção livresca. (5)

Não é concebível nem inconcebível, é inconcebível e concebível;
o absoluto, então realizado, não é apreendido por parcializações. (6)

O método é principiar com o som e realizar o não-som a seguir,
pois o ser, não o não-ser, é obtido por meio do estado de não-som. (7)

O absoluto é indiviso, inabalado, inemotivo; “eu sou o absoluto”,
aquele que tiver ciência disso assimila o absoluto para sempre. (8)

Inabalado e infinito, alheio a condicionamentos ou a analogias,
incomensurável e sem início; quando se conhece o júbilo maior, (9)

não há morte nem nascimento, não há veneração nem autoridade,
não há anseio de libertar-se nem libertação – apenas o fim supremo. (10)

O si-mesmo deve ser sentido como um só, na vigília, sonho ou sono;
ao ultrapassar os três estados não se contrai nascimento novamente. (11)

Mesmo sendo uno, o si-mesmo coexiste neste ou naquele ser;
é visto como único e múltiplo, tal como a lua se revela na água. (12)

Como o éter contido em um vaso, quando o vaso se quebra,
o vaso desaparece, mas não o éter: a vida é como o vaso. (13)

Formas diversas são arruinadas de tempos em tempos;
ele desconhece o perecimento mas ela sempre conhece. (14)

Se há constructos da linguagem, ele habita no lótus do coração;
mas, uma vez rompidas as trevas, é descoberta a unidade única. (15)

A sílaba-eterna, na linguagem, é o absoluto: ela passa e o eterno fica;
que o sábio medite na sílaba-eterna se deseja paz para o si-mesmo. (16)

Dois saberes a serem sabidos: o absoluto da linguagem e o supremo;
o versado no absoluto da linguagem chega ao supremo absoluto. (17)

Depois de aplicar-se às escrituras dedicadas a todos os saberes,
deve o estudante deixá-las, como joga o farelo quem deseja o grão. (18)

Mesmo vacas de cores diferentes produzem leite de uma única cor;
a gnose é parecida com o leite e os vários sistemas, com as vacas. (19)

Como a manteiga se oculta no leite, em cada ser, a gnose habita;
deve-se produzir manteiga com a mente, ao modo de uma colher. (20)

Aderindo à conduta da gnose, aviva-se a vasta chama condutora;
“eu sou o absoluto, integral, impoluto e pacífico”, assim é ensinado. (21)

“Eu sou Vasudeva, a morada de todos os seres
que mora em todos seres por todas as graças.” (22)

Leia o resto deste trabalho, incluindo a sua introdução e transliteração aqui.

Retirado de http://www.om.pro.br com a permissão do autor. João Barbosa Gonçalves é professor de língua sânscrita, com formação em Letras, cursando atualmente o doutorado no Departamento de Semiótica e Lingüística Geral da FFLCH/USP (CNPq). Mantém, ao lado dos estudos do doutorado, o foco no desejo primordial que motivou o aprendizado da língua sânscrita: o Yoga, em suas várias vertentes, que podem ser aproximadas das disciplinas contemporâneas da psicologia e da filosofia, e também da mística e da religião. É o editor do site "O Som e a Escritura" e do blog "Yogam, Yogas, Yogena...".

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