A Ciência Tântrica do Hatha Yoga & o Advaita-Vedánta - Fernando Liguori

Om Nath Uttara Kaula Sampradáya

O Hatha Yoga é de origem tântrica! Entre os estudiosos há um consenso de que o hatha tenha surgido no período pós clássico da história indiana, entre os Sécs. IX e X, período posterior ao sistema de Yoga codificado por Pátañjali em seu Yoga-Sútra. Esta origem estaria conectada a linhagem dos Natha Siddhas[1] iniciada com Matsyendranatha e Gorakshanatha, do norte da Índia.

Talvez este não seja o nascimento, conforme nos ensinam as autoridades, mas o renascimento e o desenvolvimento do hatha. Para tal, me apoio em dois documentos importantes do Vedánta, sendo eles o Shvetashvatara Upanishad[2] e do Maitri Upanishad,[3] ambos anteriores ao Yoga-Sútra.

Mantendo o corpo firme, como as três partes eretas [tronco, pescoço e cabeça], o sábio dirige os sentidos e a mente ao interior do coração. Brahman é o barco em que ele atravessa o rio do medo. - Shvetashvatara Upanishad, II:8.

Controlando sua força vital (prána), com seus movimentos controlados, o sábio inspira pelas narinas, com a respiração restringida. Livre de distrações, que ele controle sua mente, como o condutor controla os cavalos rebeldes. - Shvetashvatara Upanishad, II:9.

Não conhece doença, velhice nem sofrimento aquele que forja seu corpo no fogo do Yoga. Atividade, saúde, libertação dos condicionamentos, circunspeção, eloqüência, cheiro agradável e pouca secreção, são os sinais pelos quais o Yoga manifesta seu poder. - Shvetashvatara Upanishad, II:12-13.

Estas citações remetem e conectam o trabalho com os ásanas eras antes da codificação do Yoga feita por Pátañjali. É feita a alusão à importância do alinhamento nas posturas durante a prática mantendo-se o relaxado para que uma comunhão mais efetiva possa ser efetuada pelo sadhaka com o coração, i.e. o anahatacakra.

Também é feita a alusão onde o pensamento dirigido deve estar conectado a respiração. Este é um processo fundamental para o desenvolvimento do hathayogi. Aqui fazemos um paralelo com uma das escrituras mais importantes do Hatha Yoga:

Enquanto a respiração (prána) for irregular, a mente permanecerá instável; quando a respiração se acalmar, a mente permanecerá imóvel e o yogi conseguirá a estabilidade. Por conseguinte, deve-se controlar a respiração [praticando-se o pránáyáma]. - Hatha Yoga Pradípiká, II:2.

Aquele que detém o alento, detém também o pensamento. Aquele que domina o pensamento, domina igualmente o alento. - Hatha Yoga Pradípiká, IV:21.

Um dos temas centrais sempre presente na prática do hatha é a idéia de se forjar o corpo no fogo do Yoga. É a idéia da transmutação do elemento bruto (o corpo físico de desejos) no brilho e dureza do diamante (vajra deha). No Gheranda Samhita, I:24 encontramos: Assim como um jarro de argila crua, jogado neste mundo, o corpo decai rapidamente. É preciso endurecê-lo, forneando-o no fogo do Poder, para fortalecê-lo e purificá-lo. Esta idéia está intimamente conectada a um outro tema muito difundido pela ciência tântrica: trata-se dos poderes paranormais aperfeiçoados pela prática do sádhana tântrico.

Contestando algumas autoridades, nós podemos dizer que os siddhis (poderes ou capacidades paranormais) que ocorrem naturalmente aos praticantes no decorrer de seus sádhanas são úteis e essenciais no caminho do auto-aperfeiçoamento. Algumas escolas de caráter verticalista como p.e. o Advaita-Vedánta, suspeitam e frequentemente advertem seus aderentes contra o cultivo e uso de tais capacidades. Concebendo a natureza (prakti) como máyá, esta é a típica abordagem verticalista da metafísica advaita. Uma filosofia que considera o mundo e suas manifestações como um processo de perigo ao buscador transfere sua crença a todas interações concebíveis com o mundo ilusório. Seguindo esta linha de pensamento, qualquer siddhi que surja dentro da manifestação física e ilusória do corpo físico somente serve a causa de ilusão e servidão, o que atrela a alma ainda mais a ilusão. Assim, eles devem ser rejeitados, nunca usados e jamais exibidos.[4]

O ponto de vista tântrico é completamente diferente. Um texto importante do Hatha Yoga chamado Yogashikáupanishad, I:4, descreve o corpo divinizado do yogi: este corpo imortal transubstanciado é lúcido como éter e invisível até mesmo para as divindades... ele é dono de todos os tipos de poderes paranormais, especialmente a capacidade de assumir qualquer forma desejada. Na tradição do Yoga, este é um dos temas folclóricos mais citados.

O Tantra compreende que os poderes paranormais são simplesmente manifestações do Poder Divino de Shakti. O propósito declarado do Hatha Yoga é preparar o corpo para os rigores da meditação intensiva do Rája Yoga e posteriormente para a investida da iluminação que, inevitavelmente, leva a significativas mudanças energéticas e bioquímicas. No corpo despreparado, a energia divina (shakti) pode causar dano e morte prematura. Portanto, o corpo deve ser completamente purificado através da ciência do Hatha Yoga e do sádhana tântrico. O ideal do corpo saudável e indestrutível se baseia nesta filosofia, o preparo para as ascensão do poder da Serpente de Fogo ou Kundaliní-Shakti.

O Vedánta trata de assuntos deveras vezes abordados pela prática do hatha. A vitória sobre as mazelas que atormentam o ser humano como o sofrimento, a velhice e a morte. No Hatha Yoga Pradípiká, II:78 encontramos: Quando se aperfeiçoa o Hatha Yoga, aparecem os seguintes sinais: agilidade física, brilho no rosto, manifestação da vibração sutil interior (nada), olhar penetrante e claro, saúde, controle do fluido seminal (bindu), aumento do fogo digestivo e total purificação das nadis. No mesmo texto, III:30, é dito: ... protegem contra a morte e a velhice, aumentam o fogo gástrico e proporcionam poderes paranormais (siddhis).

O Maitri Upanishad é um dos mais antigos grupos de Upanishads. Sua ênfase se dá em um programa completo de seis partes denominado shadanga que são: 1. pránáyáma (expansão da vitalidade); 2. pratyáhára (abstração dos sentidos); 3. dháraná (concentração); 4. dhyána (meditação); 5. tárka (questionamento contemplativo) e samádhi (iluminação).

Esta é uma comprovação que este documento antecede o sistema de oito partes de Pátañjali (Ashtanga Yoga) e o sistema de sete partes do Gheranda Samhitá (Sapta Sádhana).[5] Desde a antiguidade o conhecimento prático do Yoga vem sendo distribuído sempre em etapas em uma tentativa de sistematização do grande volume de técnicas que compõem o Yoga desde sua origem.

Assim como o Shvetashvatara Upanishad, o Maitri Upanishad contém uma gama de descrições técnicas parecidas com o Hatha Yoga desenvolvido séculos depois. Estes dois documentos, assim como o Hatha Yoga Pradípiká – como enfatizado acima – coloca ênfase no fluxo da energia vital – prána – e a instabilidade da mente. O Maitri indica a prática do pránáyáma como o meio mais importante para se alcançar à estabilidade da mente. Da mesma maneira, o texto chega a mencionar a prática que seria conhecida posteriormente como khechári mudrá, que consiste em recolher e elevar a língua, pressionando-a no palato mole, como forma de evitar que o bindu, o néctar lunar, se disperse a partir do somacakra. Esta é uma das principais práticas do Yoga de linhagem tântrica: o hatha, kundalini e laya. Isto demonstra que este conhecimento técnico vem sendo passado de geração a geração, tomando forma variada com o passar dos milênios, mas mantendo sua essência como um corpo solidificado de desenvolvimento espiritual.

A ausência de um esclarecimento acerca das técnicas de ásanas nestes documentos nos remete a idéia de que a cultura das posturas possivelmente só veio a ser desenvolvida com o renascimento do hatha entre os Sécs. IX e X. É fato comprovado que os textos mais antigos sobre Yoga davam muita atenção à prática do pránáyáma e satkarmas e pouca atenção à cultura das posturas que foram o substrato do pensamento medieval acerca da corporificação do espírito que deu ímpeto ao Hatha Yoga.

Contudo, no monastério de Shringeri Math, nas montanhas do interior do estado de Kerala, Sul da Índia – local sagrado onde moram e trabalham os continuadores do trabalho de Adi Shankaráchárya, o grande iluminado, filósofo, poeta, profeta e reformador do hinduísmo – fora encontrado dentro do templo maior grafias de hathayogis praticando ásanas. Apareciam nos painéis, que se estendiam, camadas sobre camadas na parede oeste do templo, todas as posturas clássicas do hatha.

Esse templo foi construído enquanto o grande filósofo Adi Shankaráchárya estava vivo, aproximadamente no século VIII d.C. Isso pode demonstrar que a prática de ásana do Hatha Yoga pode ser muito mais antiga que os textos atribuídos a Matsyendranatha, Gorakshanatha e os demais yogis que preservaram essa tradição no norte da Índia a partir dos séculos IX e X d.C. até o aparecimento dos textos clássicos que foram preservados, como a Hatha Yoga Pradípiká e o Gheranda Samhitá, que datam do século XV.[6]

Finalmente, outro dos sistemas visíveis no Maitri Upanishad é o Nada Yoga, que será retomado tanto na Hatha Yoga Pradípiká como no Gheranda Samhitá. É aqui que aparece pela primeira vez a expressão Shabda Brahman, i.e. corpo sonoro do Absoluto para designar o mantra sagrado Om.

Om Namah Shivaya!

Pesquisa e organização

Fernando Liguori
Anuttara Kápilanath Kulácaryá
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[1] Tradição Nath Uttara Kaula.
[2] A Upanishad do Cavalo Branco (shveta = branco; ashva = cavalo).
[3] Maitri é o nome de um rishi, um sábio-yogi-poeta que iniciou a linhagem chamada Maitrayaniya
[4] O Yogatattvaupanishad, III:111, ensina o Hatha Yoga tântrico sobre as bases do Advaita-Vedánta, favorecendo assim o ideal de videhamukti, i.e. a libertação desincorporada.
[5] O Hatha Yoga surgiu da tradição tântrica de cultivo do corpo chamada kaya-sádhana. Esse cultivo do corpo floresceu entre os Sécs. IX e X d.C. O Gheranda Samhitá, ao lado do Hatha Yoga Pradípiká, do Shiva Samhitá, do Siddha-Siddhanta-Padati, do Hatha-Ratna-Avali e muitos outros, é um dos mais destacados textos do Hatha Yoga, sendo relativamente pouco conhecido pelos interessados na verdadeira tradição do Yoga original. Gheranda Samhitá significa Coletânia de Gheranda. O seu autor, um vaishnava de Bengala, é desconhecido. Teria escrito o texto por volta do final do século XVII.
[6] Mas esta é uma hipótese. Nada impede que os ásanas grafados na parede do templo de Shringeri Math pudessem ter sido feitas por artistas de tempos modernos. Nenhum estudo científico acerca disso foi feito a fim de se estabelecer provas e conclusões que expressem uma postura definitiva.

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Referências bibliográficas

George Feuerstein – Tantra, Sexualidade e Espiritualidade; A Tradição do Yoga.
Pedro Kupfer – O Hatha Yoga e a Cultura Védica (artigo); Tantra + Vedánta = Hatha Yoga (artigo).
Shrii Shrii Ánandamúrti – Discourses on Tantra, Vol. I & II.
Tarananda Sati – Kaula Tantra, a Arte do Ritual e da Magia.

Retirado de http://srikulacara.blogspot.com, com a permissão do autor. Fernando Liguori (Anuttara Kápilanáth Kuláchárya) começou a trabalhar com Yoga e Meditação em 1996. Atualmente é professor de Hatha Yoga e vem se especializando no método Iyengar Yoga. Desde a juventude participa de movimentos espirituais nos mais diversos seguimentos. Em suas peregrinações religiosas, estudou o xamanismo diretamente com pajés venezuelanos, chegando a morar na Venezuela, Chile e Argentina. É Mestre Reiki em sete sistemas diferentes e terapeuta holístico. Adepto da Tradição Náth Sampradáya e da Tradição Kaula, linha Trika (Spanda) da Caxemira. Enfermeiro (Estácio de Sá), especializado em enfermagem pré-hospitalar e atendimento de urgência e emergência. Por muitos anos foi professor de Tae Kwon Do, Hap Ki Do e Kickboxing. Mora em Juiz de Fora, MG, com sua esposa e filho, de onde edita os blogs Náth Uttara Sríkulácára Sampradáya – dedicado ao estudo da Tradição do Yoga, do Tantra e do Shaivismo da Caxemira – e Yoga-Br – dedicado ao estudo do Yoga sob uma perspectiva científica, envolvendo trabalhos na área social, educacional e da saúde. Junto a sua esposa, dirige um centro particular de terapia yogí chamado Kaula – Tantra, Yoga & Áyurveda. Ministram programas abrangentes de treinamento em Yoga e Áyurveda sob uma perspectiva tântrica com propósitos terapêuticos para harmonizar e curar o corpo, a respiração e a mente.

Comentários

  1. Namaste Gus!

    Ando muito interessada em saber mais sobre Tantra... assunto interpretado de uma forma tão errada aqui no Ocidente.

    Penso em comprar o livro do George Feuerstein, pois parece ser bem completo.

    Hari Om

    Fe

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