O Papel do Guru no Sanatana Dharma - Frank Morales

tad viddhi pranipatena
pariprasnena sevaya
upadeksyanti te jnanam
jnaninas tattva-darsinah


“Procura aprender a Verdade abordando um mestre espiritual. Questiona-o de forma submissa e presta-lhe serviço. A alma realizada pode transmitir-te conhecimento pois ele viu a Verdade.” (Bhagavad Gita, 4:34)

O conceito de praticar uma vida espiritual sob a supervisão de um guru autêntico e qualificado, ou mestre espiritual, tem sido central a toda a visão global Dharmica desde tempos imemoriais, até aos nossos dias. Tão importante tem sido o papel do guru na cultura Védica, que não existe uma tradição Hindu ou sampradaya (escola de pensamento) em todo o Sanatana Dharma que não preste o maior respeito à importância do guru. O grandioso texto Vedantino conhecido como Vedanta-sara pinta o seguinte quadro dramático para transmitir a importância de ter um guru na senda espiritual de cada um:

janana-maranadi-samsaranala-santapto dipta-sira jala-rasim iva
upahara-panbm sotriyam brahma-nistham gurum upasrtya tam anusarati


“Assim como uma pessoa cuja cabeça esteja em chamas corre para a água, aquele que se queima com as chamas de nascimento, morte, velhice e doença no holocausto da existência material tem de correr para um guru genuíno para alívio. Tal guru tem de estar estabelecido na Verdade Absoluta e bem versado nas escrituras. A pessoa deverá aproximar-se dele com tudo o que é necessário para sacrifício e submeter-se a ele como discípulo, pronto a desempenhar todas as suas instruções.” (Vedanta-Sara, 11)

Na presente era, o termo “guru” tornou-se muito conhecido até no mundo não-Hindu, para além de ser conhecido dentro do Sanatana Dharma. De facto, o termo “guru” tornou-se parte do léxico padrão Inglês surgindo em palavras como “guru informático”, “guru da saúde”, “guru económico”, etc. sendo empregue no dia-a-dia. Enquanto o uso da palavra se disseminou, a sacrossanta importância da posição do guru não é tão profundamente entendida na sociedade contemporânea como foi outrora. No seguinte trabalho, eu irei, resumidamente, explicar o entendimento Dharmico tradicional da importância do guru na vida do praticante espiritual, assim como dissipar alguns dos mitos mais comuns erradamente associados ao princípio de guru.

Curiosamente, a própria palavra “guru” é um termo um tanto ao quanto generalizado que simplesmente significa um professor competente de qualquer tipo. Qualquer perito competente que esteja autorizado a ensinar um assunto específico pode ser considerado um guru no sentido mais geral. Desta forma, pode haver um guru de sitar, um guru de artes marciais, um guru de ciência médicas, ou um guru de belas artes. No entanto, quando a palavra é usada abertamente no sentido espiritual então estamos a falar acerca de um guru de uma natureza categoricamente diferente. O guru espiritual é especificamente designado por “sadguru” ou professor da Verdade. É o sadguru, o transmissor da Verdade, quem serve como um modelo base a todo e qualquer e tipo de guru.

Foi sempre universalmente reconhecido que alguém apenas pode aprender um campo especializado de conhecimento importante de um professor experiente e qualificado, um perito naquele assunto particular que tem tanto o conhecimento teórico como a experiência necessária adquirida para trazer aquele conhecimento à tona. Se alguém quisesse estudar para se tornar médico, por exemplo, é entendido que o único meio para realmente compreender medicina é através de uma escola reconhecida, e aprender sob a instrução de professores muito experientes que são, eles mesmos, doutores reconhecidos treinados e autorizados a ensinar. Se nós tentarmos aprender medicina apenas lendo livros por nós mesmos, sem os benefícios da orientação especializada, estaremos a fazer a nós próprios e aos nossos futuros pacientes o maior dos danos. Ao invés de curarmos os nossos pacientes, na realidade, estaremos a prejudicá-los visto não termos aprendido medicina de uma autoridade viva.

Do mesmo modo, de sempre, tem sido universalmente reconhecido na nossa tradição Hindu que se alguém deseja entender e progredir no reino da espiritualidade é também necessário procurar orientação dos mais hábeis profissionais espirituais disponíveis. Tal profissional espiritual é o guru.

De acordo com o Bhagavata Purana:

tasmad gurum prapadyeta
jijnasum sreyam uttamam
sabde pare ca nisnatam
brahmany upasamasrayam


“Aquele que procura a Verdade Suprema tem de se render a um mestre espiritual, um guru. Um guru conhece o significado profundo dos Vedas, está estabelecido na Verdade Absoluta e é perito no shastra, as escrituras reveladas.” (Bhagavata Purana, 11.3.21)

De todos os tipos de gurus, as escrituras (Shastras) do Sanatana Dharma têm reconhecido o Acharya como a mais importante forma que o princípio de guru pode ter. Acharyavan puruso veda, “Apenas aquele que tem um Acharya pode conhecer a Verdade” (Chandogya Upanishad, 6.18.2). Apenas sob a orientação de um Acharya que conhece a Verdade pode o buscador, por sua vez, conhecer a Verdade.

O sadguru é um professor espiritual. O Acharya, além disso, é considerado um sadguru que atingiu um grau muito mais alto de desenvolvimento espiritual pessoal, e que assim tem mais responsabilidade no campo da liderança Dharmica. Um Acharya é um precetor espiritual que representa a linhagem viva (sampradaya) do Sanatana Dharma, e que personifica os ensinamentos do Dharma na sua própria vida, desta forma ensinando o mundo através do seu próprio exemplo vivo pessoal. Enquanto que todo o Acharya cumpre a função de um guru, nem todo guru pode ser considerado um Acharya.

Mais do que ser apenas um professor no sentido académico formal, porém, o Acharya guru é reconhecido como sendo alguém que possui qualidades divinas devido aos seus anos de prática e realização interior, e que assim personifica perfeitamente o fruto dos ensinamentos espirituais na sua própria vida.

acinoti yam sastrartham
acare sthapayaty api
svayam acarate yasma
acharyas tena kirtitam


“Um Acharya é aquele que compreende plenamente as conclusões das escrituras reveladas. O seu próprio comportamento reflete a sua profunda realização, e assim ele é um exemplo vivo do preceito divino. Ele é, por isso, conhecido como um Acharya, ou aquele que ensina o significado das escrituras através da palavra e ação.” (Vayu Purana)

O guru qualificado e autêntico não é apenas alguém que ensina a Verdade verbalmente, mas, também vive essa Verdade perfeitamente, e quem então reflete essa Verdade aos seus estudantes de uma forma dinâmica e vivificante.

Na presente Era de Conflito (Kali Yuga), infelizmente, encontramos amiúde indivíduos não qualificados que se auto proclamam gurus que, muitas vezes, ficam aquém do verdadeiro significado do termo. Frequentemente, tais pessoas não qualificadas não possuem os pré-requisitos, formação e características necessárias para se denominarem um guru no sentido autêntico deste termo baseado nas escrituras. As escrituras do Sanatana Dharma forneceram-nos linhas de orientação muito claras e transparentes sobre muitas das mais importante qualidades necessárias para se reconhecer se uma pessoa é, ou não, um guru autêntico e qualificado. Algumas dessas linhas de orientação são delineadas na Bhagavad Gita:

duhkhesv anudvigna-manah
sukhesu vigata-sprhah
vita-raga-bhaya-krodhah
sthita-dhir munir ucyate


“Aquele que não se perturba apesar da miséria tríplice, que não fica eufórico quando experiencia prazer, e que está sempre livre de apego, medo e fúria, é chamado de sábio de mente estável.” (Bhagavad Gita, 2:56)

Assim, o sadguru (verdadeiro guru) é interiormente desapegado e transcende os sofrimentos deste mundo, aceitando o prazer e a dor, sofrimento e prazeres com igual atitude. É devido ao estado transcendente do guru verdadeiro – e a consequente calma, paz e compostura que o guru exsuda o tempo todo – que o verdadeiro guru tem a habilidade de ajudar o seu aluno a transcender, de igual forma, a escuridão da ignorância.

Além disso, o verdadeiro guru exibe certas qualidades inerentes necessárias que são um reflexo do facto que ele presencia o Divino na sua própria vida. De novo, a Bhagavad Gita dá-nos várias listas destas importantes qualidades transcendentais do verdadeiro guru, ou do sábio liberto, incluindo as seguintes características importantes:

“O Santo Senhor disse: Destemor, purificação da sua existência, cultivo de conhecimento espiritual, caridade, auto controlo, realização de sacrifício, estudo dos Vedas, austeridade e simplicidade, não violência, veracidade, ausência de raiva, renúncia, tranquilidade, aversão à procura de defeitos, compaixão e ausência de cobiça; gentileza, modéstia e firme determinação; vigor, clemência, bravura, limpeza, ausência de inveja e paixão pela honra – estas qualidades transcendentais, Ó filho de Bharata, pertencem a homens divinos favorecidos com natureza sagrada.” (Bhagavad Gita, 16:1-3)

Desta forma, o guru personifica o fruto de um estilo de vida sattivico (espiritualmente positivo) e de anos de prática meditativa.

Um verdadeiro guru é conhecido não apenas pelo carisma que possui, ou pelos supostos milagres baratos que aparentemente realiza, ou pela popularidade que atingiu junto das massas ingénuas devido a bem conduzidas campanhas de relações públicas e marketing. Mas, mais exatamente, os verdadeiros gurus são conhecidos se personificam as qualidades de um guru que são claramente delineadas nas escrituras do Sanatana Dharma. Qualquer pessoa que afirma ser um guru verdadeiro, mas não exibe todas as qualidades de um guru verdadeiro que são reveladas nas escrituras do Sanatana Dharma, é um falso guru e deverá ser imediatamente rejeitado como um charlatão se o estudante quiser fazer algum progresso em direção ao objectivo de realização transcendental.

É precisamente porque o verdadeiro guru personifica tanto o mais elevado ensinamento filosófico (siddhanta), bem como o comportamento moral e yogico descrito nas nossas escrituras que o guru tem a faculdade de nos trazer da ignorância à sabedoria, da escuridão à luz, e da escravidão à liberdade.

De acordo com as nossas escrituras, quando nos encontramos na presença de tal guru autêntico, é como se estivéssemos na presença de Deus; porque, como Deus, o sadguru tem a habilidade de nos revelar a Verdade, e assim libertar-nos. No Bhagavata Purana, Sri Krishna confirma isto nas Suas instruções ao Seu grande devoto Uddhava:

acharyam mam vijaniyam
navamanyeta karhicit
na martya buddhyasuyeta
sarva-deva mayo gurum


[Krishna disse a Uddhava] “Conhece o Acharya como Eu próprio. Eu sou o Acharya. Nunca invejes o Acharya; nunca profanes o seu nome ou o consideres como um homem comum. Porque o Acharya canaliza o infinito, Ele é maior que a soma total de todo o finito. Assim, ele é mais importante que todos os deuses.” (Srimad-Bhagavatam 11.17.27)

E mais, Sri Krishna explica no mesmo texto sagrado que apenas olhar para o Acharya liberto como um homem comum, e não prestar o devido respeito a tão exaltado guru, é considerado por Ele uma grande ofensa (guru-maha-aparadha):

yasya saksad bhagavati
jnana-dipa prade gurau
martyasad-dhim srutam tasya
sarvam ku-jara-saucavat


“O guru tem de ser considerado como o próprio Senhor Supremo, porque ele concede a luz do conhecimento transcendental aos seus discípulos. Consequentemente, para alguém que mantém a conceção material que o guru é um ser humano comum tudo é frustrado. As suas tentativas em progredir na vida espiritual – os seus estudos Védicos e conhecimento das escrituras, as suas penitências e austeridades, e o seu culto à deidade – são todas inúteis como o banho de um elefante que se rebola na lama em seguida.” (Srimad-Bhagavatam 11.20.17)

A confirmação destas instruções Védicas sobre a natureza do sadguru encontra-se ao longo de toda a exposição das escrituras Hindus. Por exemplo, no Padma Purana é explicado que: gurus nara-matir yasya va naraki sam, “É dito que aquele que pensa que o guru é um homem ordinário vive em ignorância.” Desta maneira, vemos que a totalidade das escrituras falam a uma só voz, autoritária e unida sobre a importância do guru e o papel do guru na vida daquele que afirma desejar conhecer a Verdade.

Mais à frente na mesma conversa, Uddhava responde às instruções de Sri Krishna da mesma forma:

naivopayanty apacitim kavayas tavesa
brahmayusapi krtam rddha mudam smarantam
yo'ntar bahis tanu-bhrtam asubham vidhunvann
acarya-caittya vapusa sva-gatim vyanakti


[Uddhava disse a Sri Krishna] “Ó meu Senhor! Poetas transcendentais e peritos na ciência espiritual não conseguiriam expressar totalmente a sua dívida para Contigo, mesmo que fossem agraciados com a duração da vida de Brahma, pois Tu apareces em duas formas – exteriormente como o Acharya e interiormente como o Paramatman, o Ser Supremo – para libertar os seres vivos revelando-lhes o teu serviço devocional e ensinando-os como se aproximarem de ti no caminho do amor divino.” (Srimad-Bhagavatam 11.29.6)

Para além de explicar tanto a natureza e as qualidades do sadguru, as escrituras também explicam que é igualmente muito importante compreender as qualidades importantes que devem estar presentes num estudante sincero e qualificado. Na Katha Upanishad, por exemplo, lemos o seguinte:

sravanayapi bahubhir yo na labhyam
srnvanto 'pi bahavo na vidyum
acharyo 'sya vakta kusalo 'sya labhda
acharyo jnata kushala nushishtam


“Muitos não conseguem sequer ouvir acerca da alma, e mesmo após ouvirem acerca da alma, muitos não conseguem entender; isto acontece porque é difícil encontrar um Acharya que tenha uma visão genuína da verdade. Tal Acharya qualificado é uma grande alma e é muito raro. Ao mesmo tempo, a realização da verdade apenas pode ser atingida por aqueles discípulos que cuidadosamente seguem os ensinamentos do Acharya e se tornam peritos na ciência de Deus. Tais discípulos também são muito raros. Assim, apenas uns poucos alguma vez chegam a conhecer a alma na verdade.” (Katha Upanishad, 1.2.7.)

É, assim, explicado que encontrar um estudante sincero e merecedor como sendo tão difícil como encontrar um sadguru qualificado e digno. A mais alta realização da Verdade transcendente, e a libertação espiritual pessoal (moksha) que resulta de tal realização, é o mais difícil objetivo a atingir. Assim, Krishna afirma na Bhagavad Gita:

Manushyam sahasreshu
Kashchid yatati siddhaye
Yatatam api siddhanam
Kashchin mam vetti tattvatah


“Dos muitos milhares de homens, um irá tentar atingir a perfeição; e dos poucos que atingem este objetivo, apenas uma alma rara irá talvez conhecer-Me como Eu Sou. (Bhagavad Gita, 7:3)

Quando um estudante sincero e um sadguru qualificado finalmente se encontram, e se unem no processo eterno de câmbio espiritual – o guru partilhando a sua visão, instrução e presença ao estudante; e o estudante aprendendo e crescendo espiritualmente com humildade, sinceridade, abertura e entusiasmo – assistimos às condições perfeitas necessárias para a celebração e vivência da Verdade. Se você procura a Verdade, então procure a orientação daquele que viu a Verdade. Procure o sadguru.

Retirado de http://bit.ly/XJ08i, traduzido do Inglês por Gustavo Cunha e publicado em www.YogaVaidika.com. Sri Dharma Pravartaka Acharya (Dr. Frank Morales, Ph.D.) tem um doutoramento em Estudos Religiosos e é reconhecido pela comunidade Hindu global como sendo um Acharya proeminente. Site oficial: www.dharmacentral.com. Imagem de topo propriedade de Himalayan Academy, usada sob licença Creative Commons.

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