Os Kleshas - Fernando Liguori

Já faz alguns dias estavamos discutindo acerca dos elementos que obscurecem a consciência. Este é um dos muitos temas abordados pela ciência do Yoga e vale a pena discutir um pouco sobre o assunto.

Ignorância, egoísmo, exaltação das paixões, aversão e medo da morte são os cinco kleshas. A Ignorância é a causa dos outros quatro, estejam eles em estado latente, atenuado, intermitente ou ativo. - Yoga-Sútra, II: 3-4.

Avidyá (ignorância) é o primeiro klesha. Conforme expresso por Pátañjali, ela é a fonte ou o modo expresso dos demais aspectos que obscurecem o princípio consciência (purusha). Assim, sua primeira expressão é asmitá (o ego). Eu estou certo; eu estou triste; eu sou o melhor professor de Yoga e etc. Estas são expressões que possivelmente no futuro poderão mudar, portanto não são reais, são um tecido cheio de nós enredado em volta de purusha. Outra forma pela qual avidyá se expressa chama-se rága (o apego). Este é o desejo de posse, quer necessitemos ou não. É a expressão de ter pelo simples fato de querer ter, independente da necessidade. Avidyá também se expressar como dvesha (aversão). É um sentimento inócuo de repulsão. Podemos dizer que é uma forma oposta de rága. A aversão muitas das vezes é um sentimento auto-imposto por condições sócio-culturais que na verdade não são reais. Não parte do princípio consciência, até porque este princípio em essência é desprovido destas condições que o velam. Finalmente, avidyá pode se expressar como abhinivesha (medo). Com o medo da morte o homem se agarra à vida com todas as suas energias.

Avidyá pode se manifestar de diferentes formas e em proporções diversas, bem como simultaneamente entre suas quatro manifestações. Assim, os quatro aspectos de avidyá nem sempre se apresentarão em proporções iguais. Pode acontecer de um desejo (rága) nos impulsione a fazer algo que nosso orgulho, nosso ego (asmitá) nos proíba. Ainda, que nosso desejo de ser notado (asmitá) tenha se tornado tão grande que superou nossa ansiedade (abhinivesha), pois temos de demonstrar como heróicas são nossas atitudes. Enfim, estes são véus que causam flutuações no princípio consciência. A prática do Yoga tem como objetivo reduzir avidyá e suas manifestações para que uma compreensão mais clara possa se efetivar. Na medida em que o sadhaka sincero pratica, um sentimento interno de paz e contentamento (samtosha) se faz presente. Uma satisfação interna livre de sentimentos e julgamentos. O centro deste contentamento é o princípio consciência chamado purusha que antes se encontrava velado por avidyá.

Na medida em que observamos as manifestações de avidyá notamos sua similaridade com aquilo que conhecemos como dukha. Muitas vezes na literatura do Yoga nos aprendemos que palavras como sofrimento, problemas ou doenças definem dukha. Contudo, uma melhor definição seria sentimento de limitação. Dukha é assim um aspecto da mente que nos dá a sensação de estarmos sendo esmagados por nossas próprias limitações, sejam elas físicas ou mentais. Assim, temos a sensação de estarmos sendo dolorosamente amarrados e restritos. Então, dukha é uma manifestação de avidyá. Em outras palavras, podemos dizer que dukha é gerada pelas manifestações de avidyá. Podemos compreender assim: toda ação que brota de avidyá gera uma forma de dukha. Muitas vezes não conseguimos observar avidyá e suas manifestações, mas sempre conseguimos observar sua conseqüência, dukha. Contudo, somente a percebemos quando já está instalada em nossos sentimentos e sensações. Assim, dukha aparecerá sempre que qualquer ação tenha origem em avidyá.

Dukha é melhor compreendido quando observamos os gunas: [1] tamas, rájas e sattva. Tamas descreve o estado de peso e lentidão nos sentimentos e nas tomadas de decisões. Uma sensação de letargia intensa. Muita dificuldade de concentração e de atenção em si e em tudo o que há ao nosso redor. Isso gera dukha. Rájas é uma manifestação oposta. É a agitação oposta à letargia. Em desequilíbrio a manifestação deste guna gera dukha. Mas a terceira manifestação dos gunas, sattva, é compreendida como a ausência das outras duas. Não há peso ou letargia, bem como agitação ou inquietação, mas sim e apenas clareza, lucidez. Aqui dukha não pode existir.

Como demonstrado anteriormente, a pratica do Yoga conduz o sadhaka a um estado de consciência e atenção plena. Permanecendo neste estado, alerta, ele tem consciência deste jogo de forças dentro de si o tempo todo, evitando assim o estado de dukha.

Quando nos tornamos conscientes da presença de dukha e o vemos como algo a ser encarado, somos capazes de encontrar um caminho para nos livrarmos dele. Assim, por meio da prática do Yoga alcançamos o estado de alerta para notarmos quando dukha se apresenta.

Finalmente, o Yoga sustenta que existe um estado chamado kaivalya, onde nós, sadhakas, podemos nos encontrar livres de preocupações exteriores que causam perturbações, gerando assim dukha. Este é um tema de suprema importância no Yoga. Sim, esse é o objetivo último da prática do yoga. Liberdade é a ausência das conseqüências dos obstáculos e a supressão das ações cujos efeitos nos perturbam ou nos distraem. (Yoga-Sútra, II:25).

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[1] O conceito dos três gunas é amplamente abordado pelo Yoga-Sútra (veja principalmente II:18), bem como nos textos do Sámkhya em que eles são compreendidos como aquelas três qualidades peculiares a tudo o que é material – o que também inclui os pensamentos, sentimentos e toda a extensão da atividade mental e sensorial, mas não o purusha. O Yoga-Sútra, II:15, atesta que o movimento dos três gunas podem ser a razão para dukha. Antes da criação do universo, a Natureza material existia em um estado caótico imanifesto denominado Prádhana (substância primêva) ou Prakti (natureza). Em princípio ela se caracterizava como uma substancia una chamada mula-prakti. Pela influência do tempo – kala – dela surgiram (pulsaram) três ondas que se manifestaram como os três gunas: I. Tamas – passividade, estabilidade ou ignorância; II. Rájas – atividade, flexibilidade ou paixão; e III. Sattva – estabilidade, harmonia ou bondade. Guna é um substantivo masculino derivado da raiz verbal Vgrah, i.e. agarrar, segurar, prender; e significa corda, qualidade ou modo. Os gunas (modos da natureza material) nos prendem a natureza como três cordas resistentes que animam nossa manifestação em máyá.

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Referências bibliográficas

Pedro Kupfer – Dicionário de Yoga; Yoga Prático.
T.K.V. Desikachar – O Coração do Yoga.

Retirado de http://srikulacara.blogspot.com/2008/04/os-kleshas.html, com a permissão do autor. Fernando Liguori (Anuttara Kápilanáth Kuláchárya) começou a trabalhar com Yoga e Meditação em 1996. Atualmente é professor de Hatha Yoga e vem se especializando no método Iyengar Yoga. Desde a juventude participa de movimentos espirituais nos mais diversos seguimentos. Em suas peregrinações religiosas, estudou o xamanismo diretamente com pajés venezuelanos, chegando a morar na Venezuela, Chile e Argentina. É Mestre Reiki em sete sistemas diferentes e terapeuta holístico. Adepto da Tradição Náth Sampradáya e da Tradição Kaula, linha Trika (Spanda) da Caxemira. Enfermeiro (Estácio de Sá), especializado em enfermagem pré-hospitalar e atendimento de urgência e emergência. Por muitos anos foi professor de Tae Kwon Do, Hap Ki Do e Kickboxing. Mora em Juiz de Fora, MG, com sua esposa e filho, de onde edita os blogs Náth Uttara Sríkulácára Sampradáya – dedicado ao estudo da Tradição do Yoga, do Tantra e do Shaivismo da Caxemira – e Yoga-Br – dedicado ao estudo do Yoga sob uma perspectiva científica, envolvendo trabalhos na área social, educacional e da saúde. Junto a sua esposa, dirige um centro particular de terapia yogí chamado Kaula – Tantra, Yoga & Áyurveda. Ministram programas abrangentes de treinamento em Yoga e Áyurveda sob uma perspectiva tântrica com propósitos terapêuticos para harmonizar e curar o corpo, a respiração e a mente.

Comentários

  1. Coincidentemente havia entrado no meu blog para escrever sobre os klesas quando vi o seu post... Estamos em sintonia!

    namaste!

    Mariana

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  2. Namaste Gus!

    Falamos sobre os Kleshas neste final de semana no meu curso...

    Estamos "todos" em sintonia!

    Adorei a interpretação de Dukha relacionada aos Trigunas.

    Hari Om!!

    Fe

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