Jñāna Yoga - Paulo Vieira

Os Śāstras, escrituras indianas, apresentam uma estrutura ideal para o cumprimento dos puruṣārthas. Depois de apresentarem a estrutura, também apresentam um método prático para os atingir. Este método divide-se em três, que se complementam e integram: Karma yoga, Upāsanā yoga e Jñāna yoga. Dedicaremos o nosso estudo ao Jñāna yoga.

Jñāna quer dizer conhecimento. Jñāna yoga é o método disciplinar, prático, através do qual se adquire conhecimento. “Jñāna prapty artham yogah”. Que tipo de conhecimento? Conhecimento de si próprio, da natureza essencial, da realidade do “eu”. Este “eu”, nas escrituras, é chamado de ātmā, assim sendo, a este conhecimento chamamos ātmā jñānam.

Jñāna yoga é ātmā jñāna yoga.

Qual o propósito de adquirir este conhecimento, ātmā jñānam?

As escrituras dizem-nos que com o auto-conhecimento se obtém liberdade, mokṣa puruṣārtha, o maior dos objectivos – “Jñāna yoga mokṣartham”.

Mokṣa é a liberdade da escravidão dos gostos e aversões. Os gostos, sejam eles por pessoas ou objectos podem criar dependência. Pretendemos ter ou manter o objecto, ou pessoa querida sempre presente. Quando isso não acontece surge a sensação de vazio, de incompletude. As aversões, sejam por objectos ou pessoas, causam tensão. Objectos e pessoas são por vezes um fardo que temos que aguentar. A procura é, então, para nos livrarmos desse fardo. De facto, o maior problema reside nas relações humanas. São estas que causam maior dependência ou tensão. Na falta de determinada pessoa sinto um vazio, desejo a presença dela. Na presença de determinada pessoa sinto-me esgotado, desejo a ausência dela.

Mokṣa é a liberdade desta tirania do mundo das relações com pessoas ou objectos, o que significa que a presença destes não causa tensão, stress, e que a ausência destes não trás solidão, sensação de vazio ou incompletude. Com ou sem pessoas estou bem, com ou sem objectos também estou bem.

naiva tasya kṛtenārtho nākṛteneha kaścāna |
na cāsya sarvabhūteṣu kaścid arthavyapāśrayaḥ ||


Bhagavad Gītā, Cap3 (karma yoga), V18

Para ele (o sábio, o liberto), aqui (neste mundo) já não há nada que precise de fazer ou de não fazer (para estar bem); nem ele precisa de alguém ou de algum objecto (para ser feliz).

Esta liberdade interior é o resultado do auto-conhecimento e expressa-se com três virtudes muito úteis para o ser humano, presentes nesta prece que se segue, a prece da serenidade.

“Possa eu ter a serenidade para aceitar o que não possa ser mudado. Possa eu ter a coragem para mudar o que tem e pode que ser mudado. Possa eu ter o discernimento para saber o que pode e o que não pode ser mudado”

As três virtudes são aceitação, coragem e sabedoria ou discernimento.

A aceitação deverá ser verdadeira. Não deverá fazer surgir sentimentos de injustiça. Deverá ser uma aceitação saudável, pacífica. A vida tornar-se-á maravilhosa, se saudavelmente aceitar todas as situações inalteráveis e se corajosamente mudar tudo o que tem e pode ser mudado.

Como posso eu ter este auto-conhecimento, esta liberdade interior, ātmā jñānam? Que sādhana (prática) de Jñāna Yoga devo seguir para ter esta liberdade, mokṣa?

Qualquer conhecimento tem de ser obtido através de um meio de conhecimento – pramāna. Aquele que usa o pramāna é o pramātā. O conhecimento produzido é pramā e o objecto conhecido é prameya. Pramātā usa pramāna e adquire pramā em relação a prameya.

Para conhecer algum objecto, por exemplo uma cor, preciso dos meus olhos, o instrumento de visão. Para ouvir preciso dos ouvidos, os olhos não ouvem, os ouvidos não vêm.

Existem cinco meios de conhecimento, pramāna, nos seres humanos, Panca pauruṣeya pramānāni: Percepção (audição, visão, etc), pratyakṣam; Inferência, anumānam; Presunção, arthāpatti; Comparação, Upamānam; Não-reconhecimento, meio de saber o que é não-existente, anupalabdih.

Muitas das vezes, por motivos práticos, podemos reduzir estes cinco para dois, pratyakṣa e anumānam. Todas as ciências utilizam a percepção e a inferência como meios de conhecimento.

Que pramāna devo usar para determinado conhecimento, especialmente para o auto-conhecimento?

Os Śāstras dizem que o meio de conhecimento depende do objecto de que queremos conhecer, não depende da vontade ou gosto da pessoa. Só os olhos podem dar a conhecer a cor, mesmo que a pessoa teime em ver com os ouvidos!

Jñānam é obtido somente com o pramāna adequado, qual o pramāna para ātmā jñānam?

Os cinco meios de conhecimento, só nos dão a conhecer o mundo objectivo, o universo objectivo. Nenhum destes instrumentos tem a capacidade de dar a conhecer o observador, o sujeito por trás de cada experiência. Esta é a limitação intrínseca dos panca pauruṣeya pramānāni, que é também a limitação da ciência. A ciência apenas consegue estudar o mundo objectivo, não consegue estudar o estudante, o sujeito observador, o “eu”. Os olhos conseguem observar tudo menos observar-se a si próprios. Assim sendo, o sujeito nunca está sujeito a objectificação, o sujeito nunca é objecto de experiência.

Para ver os meus olhos preciso de um factor externo, um instrumento externo, um espelho. Da mesma forma, os pancapramāna são inadequados para me darem auto-conhecimento, a não ser que seja introduzido um sexto factor, que servirá como espelho. Devo então aceitar a necessidade de um sexto pramāna exterior a mim, que terá que ser encontrado. Este pramāna é Śāstra pramāna ou śabda (som) pramāna, os ensinamentos das escrituras. Assim como o espelho reflete a beleza exterior, também o Śāstra pramāna reflete “a beleza interior do ātmā”, do “eu”. Este Śāstra ou śabda pramāna é apauruṣeya pramāna, meio de conhecimento externo ao ser humano.

Não basta ter encontrado os Śāstras para que o auto-conhecimento se processe, é necessário o método e o estudo correctos. Ao contrário de outros livros que falam acerca de objectos exteriores, os Śāstras falam do sujeito desse conhecimento, que és tu, aquele que conhece, aquele que experiencia.

Poderei ler num livro a descrição da costa portuguesa, só quando for a Portugal é que terei contacto directo com a costa. Primeiro obtenho informação e depois experiência directa. Todo o conhecimento é processado desta forma, obedecendo a dois estágios, informação e experiência directa.

Auto-conhecimento não é informação e não esta sujeito a experiência directa, por isso é muito importante o método apropriado para estudar as escrituras. Este método é jñāna yoga.

Jñāna yoga divide-se em três partes, śravaṇam, mananam e nidhidhyāsanam.

Śravaṇam

Śravaṇam é a exposição sistemática e sem interrupções (para perguntas) ao ensinamento que vem na forma de palavras faladas. Esta exposição é feita por um professor competente, que guiará sabiamente o aluno, no sentido de que ele compreenda que ātmā jñānam não é informação, nem está sujeito a experiência directa. O problema está na ignorância acerca da nossa natureza, a solução está na remoção dessa ignorância. A audição deve prosseguir mesmo que surjam perguntas e dúvidas. Mesmo que o aluno não aceite, tenha dúvidas, ou não compreenda o que está a ouvir, deverá manter a mente aberta e receptiva, pois este é o método, assim é śravaṇam.

O aluno é livre para estar em desacordo com o professor, deverá guardar as perguntas que tiver até ser dada oportunidade para as fazer. śravaṇam pressupõe bastante paciência, ausência de crítica e juízos de valor. Será prova de humildade reconhecer que, se não compreendo o que está a ser ensinado, a falta é minha, ainda não estou pronto para reconhecer e compreender a veracidade dos Śāstras, do ensinamento.

Mananam

Depois de compreensivamente me expor ao ensinamento, por um certo período de tempo, apresento todas as minhas dúvidas, todas as minhas perguntas e usando o intelecto, usando toda a minha capacidade de pensar, de reflexão, tento responder mentalmente a todas elas. Mas a beleza deste ensinamento é tal, que tendo percorrido toda a devida exposição sistemática e chegado ao momento das perguntas, estas geralmente não existem. O método é tão eficaz, que grande parte das perguntas que possivelmente surgiriam, são respondidas antes de serem formuladas. Se surgirem perguntas e dúvidas, o aluno tem total liberdade para pedir ajuda ao professor, claro está, no devido momento. As dúvidas são um obstáculo ao conhecimento. Mananam remove todas as dúvidas que possam surgir, neste contexto remove todos os obstáculos ao conhecimento.

“nisaṃśaya jñānam” – conhecimento sem dúvidas, convicção em relação à minha natureza, a ātmā.

Śravaṇam remove a ignorância enquanto mananam remove as dúvidas.

Nidhidhyāsanam

O processo de internalização, de assimilação deste conhecimento é chamado de nidhidhyāsanam. É a remoção da minha forma habitual de pensar, é descondicionar o processo antigo e errado de pensamento. Uma vez removida a ignorância, é necessário contemplar o conhecimento, para que este possa ser mantido, assimilado, tornar-se sempre presente.

Assim como só a comida assimilada me nutre, também só o conhecimento assimilado produz o seu efeito. Não interessa a quantidade de alimento digerido, interessa sim a quantidade de alimento digerido assimilado! A pergunta que se poderá fazer não é “quantas upaniçads já conseguiste tocar, mas sim quantas upaniçads é que realmente te tocaram profundamente!

śravaṇam + mananam + nidhidhyāsanam = jñāna yoga = autoconhecimento = mokṣa = liberdade

Originalmente reproduzido em www.YogaVaidika.com com a permissão do autor (Paulo Vieira). Imagem de topo propriedade de Himalayan Academy, usada sob licença Creative Commons.

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