Entrevista a Miguel Homem - Parte 2

YV - Isso com a aprovação do Svāmiji?

MH – Sim, exatamente. Nessa altura, eu falei com Svāmiji e disse-lhe que ia começar isso. Já lhe tinha falado dessa ideia quando estive lá. Ele mandou-m um textinho para motivar as pessoas. Os Sat Sangas de estudo, no fundo começaram logo a seguir à vinda dele cá. Ele esteve cá em Outubro e os Sat Sangas, se não me falha a memória, começaram em Novembro. Houve muita gente que se juntou para o ouvir falar e ficou impressionada com a clareza dele. Houve muita gente que disse que nunca se tinha cruzado com alguém que conseguisse comunicar tanta coisa de forma tão clara e sem muita “viagem na maionese”. Durante algum tempo eu não avancei porque tinha resistência em ensinar, alguma insegurança de minha parte, se seria o correto... até porque é preciso tanta coisa para a pessoa passar isto de forma conveniente; mas, enfim, nessa última viagem em que eu tinha estado lá [o Svāmiji] disse-me que eu devia ensinar, de maneira que...

YV – Tu promoves cursos e retiros da tua autoria mas também de convidados. Queres falar um pouco dos que já foram feitos e dos que vêm para a frente?

MH – Eu ensinei durante alguns anos e nunca dei nenhum curso. Isso é uma coisa interesante porque há algumas pessoas que começam a dar aulas de Yoga e ainda nem aqueceram o tapete e já começaram a dar cursos e eu sempre achei que não valia a pena a pessoa começar a dar cursos se a pessoa não tivesse nada para contribuir. Quer dizer, repetir aquilo que toda a gente diz, antes deixar aqueles que têm mais experiência fazer. Até que, depois dessa primeira viagem à Índia, eu comecei a escrever. A minha visão do Yoga mudou tanto e eu queria passar essa visão tradicional do Yoga. Ao fim de pouco tempo, apercebi-me que aquilo não dava para um curso tinha que ser um retiro. Entretanto, a mãe da Maria, a Ivone, e o Joep tinham comprado a quinta que depois se tornou na Quinta das Águias e nós vimos ali assim a oportunidade de fazer esses retiros, e, foi assim que nasceu essa oportunidade de fazer coisas. O Pedro, da primeira vez que veio cá em Portugal, disse logo “eu vou aí e faço um retiro”. De maneira que, acabou por apressar as coisas até para se criar a estrutura toda na Quinta das Águias para se fazer isso, e foi ele quem inaugurou os cursos lá na Quinta. A seguir a ele, dei eu um curso para o qual escrevi essa primeira sebenta, que depois me apercebi que era completamente alucinado, que a sebenta que eu dei nesse curso era uma sebenta que dava para um curso semana, e depois aí, nessa altura, em Agosto, dei um curso de uma semana e percebi que ainda assim continuava alucinado porque aquilo que tinha escrito dava para muito mais que uma semana [risos]. Esse foi um ano em que, basicamente, a única coisa que fiz foi escrever e, ainda hoje, muitas coisas que ponho no site são desse ano que escrevi uma sebenta grande.
Depois, sempre fui convidando pessoas com que eu queria aprender e esse é o meu critério para trazer cá pessoas. Eu quero aprender com alguém e trago. Eu nunca trago cá uma pessoa com quem eu não tenha aprendido. Eu preciso ver o que a pessoa tem para ensinar para a convidar. Acho que isso também faz com que as pessoas saibam, mais ou menos, com o que contam quando eu trago cá alguém. Em função disso, foram surgindo outros cursos. Depois esteve cá o Marcelo [Cruz], ele até me ajudou a idealizar este curso de Haṭha Yoga que eu dou, o Haṭha Yoga dentro dos textos [clássicos], depois esteve cá o Pedro, a Glória [Arieira] a ensinar, o Tomás Zorzo, o [David] Frawley, com quem eu comecei a aprender [Ayurveda] mais tarde também esteve para vir cá duas vezes mas nunca conseguimos acertar datas. No fundo, eu ensino e trago para ensinar aquilo que eu próprio, e algum momento, senti necessidade de aprender e como vi que isso fez sentido para mim tenho essa vontade de partilhar. Acho que tenho um bocado essa coisa da criança - encontra uma coisa engraça e quer dar a boa-nova [risos].

YV – Falavas à pouco dos Mangalam e isso é também um tópico interessante.

MH – Eu sempre adorei kīrtan. E eu comecei a fazer kīrtan com o meu primeiro professor, Luís Lopes. E eu gostava imenso. Ele também tocava percussão e eu adorava aquilo. De facto, o kīrtan é a técnica mais fácil para toda a gente porque não precisa de preparação, a pessoa chega e senta, toda a gente tem garganta, não precisa de afinar, há muita gente ali [a vocalizar] ao mesmo tempo e toda a gente pode fazer essa prática do Yoga e, talvez poucas pessoas saibam, mas a diferença entre kīrtan e meditação quase não existe. Um é vacika karma e outro é manasaka karma. Um é vocalizado e outro é mental. Mas, enfim, na altura nem eu sabia isso. Mas sempre gostei daquela prática, daquilo que transmitia às pessoas, da boa disposição.
Quando eu comecei a dar aulas queria que os meus alunos tivessem essa experiência, só que, como eu não sabia tocar nada... palminha ali para-trás-e-para-a-frente e acabei por desistir daquilo. Sempre tive vontade de aprender a tocar algum instrumento para fazer isso. Por intermédio da Soninha, comecei a ter aulas de percussão com o Paulinho e ele começou a fazer aulas de Yoga comigo. Mal eu sabia o talento raro que me tinha vindo parar às mãos. Qualquer pessoa que ouça o Paulinho tocar vê o [músico] excepcional que ele é. Ele sempre foi muito melhor aluno do que eu, por isso, está aí a dar aulas e eu na percussão sou uma nódoa [risos]. E, aos pouquinhos, ele foi ganhando o gosto pelo kīrtan.
Quando voltei pela primeira vez da Índia trouxe um shruti box, que é aquele instrumentozinho que qualquer “burro vestido” consegue tocar e uma tampura que outro “burro vestido” consegue tocar, daí que, eu pensei: “isto é ideal para mim... nenhuma arte e todo o aparato”. [risos]. Cedo as minhas aulas deixaram de ser aulas, porque eu tinha aquilo e começava a tocar percussão. Essas aulas que se seguiram, durante uns tempos, eram simplesmente nós juntos a fazermos kīrtan. Ele já adorava e sempre viu esse meu entusiasmo – acho que o consegui contagiar um bocadinho - e sempre pensámos: “ah, um dia... imagina se nós tivéssemos um grupo, como seria?”
Uma vez, foste lá a casa, acho que foi em Dezembro de 2006, e estávamos a falar contigo e tu até deste o pontapé de saída para isso: “Porquê que não nos juntamos e fazemos aí qualquer coisa?” E foi, nessa altura, com o [Deep] Djoe que a coisa começou. No início, fomos tocando... entraram algumas pessoas saíram algumas pessoas. Depois acabamos por tocar juntos eu, tu, o Daniel, o Djoe [e o Paulo]. Depois, o Djoe acabou por ter de sair, por trabalho, tu também, acabaste de deixar de ter horário [para ensaiar], nessa altura, entrou também o Xavier [Ramos] e ficou este “núcleo duro” que é hoje. Eu a tocar o harmónio, a cantar, no shruti box e na tampura, o Paulo nas percussões, entretanto o Paulo tocava darabuka mas começou a aprender a tocar tablas e pakhawaj, o Xavier que toca sitar e o Daniel a tocar baixo. E, assim, começaram os Mangalam. Eu fico contente com os Mangalam porque depois surgiram uma série de Sat Sangas com pessoas a fazerem kīrtan e isso foi bom. O kīrtan é uma coisa que qualquer pessoa gosta: “primeiro estranha-se, depois, entranha-se!”[risos]

YV – Os Mangalam já fazem tournés, se calhar, qualquer dia fazem um CD, não?

MH – Pois, todos nós adoramos fazer kīrtan mas chegamos àquela fase em que precisamos de alguém que nos faça mexer. E sim, sem dúvida, todos nós gostávamos de gravar um CD, até porque acho que era uma coisa importante e era engraçado. Espero que agora na volta da Índia as coisas se organizem para que isso aconteça.

YV – Em 2007 começas a aprender Āyurveda com o Frawley. Qual é a relação entre o Yoga e o Āyurveda?

MH - O Yoga é uma vastidão. Se a pessoa tem vontade de aprender, que é coisa que eu sempre tive e tenho, a pessoa começa a perceber que existem falhas em si mesma, naquilo que a pessoa sabe. Quando eu comecei a aprender Yoga, uma das coisas que senti é que foi-me dado a conhecer uma panóplia de técnicas mas eu não sabia para quê que elas serviam. Eu lembro-me de ter escrito, logo no início, uma coisinha - que até nunca mostrei a ninguém e que ficou só para mim – sobre prāṇāyāma e depois até vim a escrever uma série de artigos sobre prāṇāyāma que estão [publicados] nos Cadernos de Yoga, talvez agora até saia em livro lá no Brasil. Eu sempre gostei da prática de prāṇāyāma e comecei a procurar saber porque se fazem os prāṇāyāmas. Não é igual fazer um bhastrikā ou um śītalī prāṇāyāma, ou nāḍiśodhana, ou kapālabhāti e eu não sabia isso. Depois, comecei a encontrar, fruto do meu estudo e das pessoas com quem fui aprendendo, o porquê das coisas. Mas, sempre quis saber como é que se ensina yoga de “um-para-um”. Porque o yoga é ensinado assim, originalmente. Esta história das aulas de yoga em grupo é uma coisa recente.
Eu queria saber isto: como é que tu olhas para uma pessoa e sabes o que esta pessoa precisa? Se dás uma aula particular como sabes? Se tens três alunos na sala como é que tu sabes? Quando comecei a estudar os textos Haṭha Yoga Pradīpikā, Gheraṇḍa Saṁhitā, Śiva Saṁhitā, e tudo o mais, eu via que sempre os efeitos eram dados por referência aos doṣas e eu pensava: “Bom, eu preciso de aprender isto!” Às vezes, o que acontece no mundo do Yoga é que as pessoas percebem que existe alguma lacuna no conhecimento delas e como não está acessível à volta delas, ou perto, dentro do Yoga as pessoas começam a buscar em outras tradições. E aí começa a “mistureba”, a confusão e a distorção. Sempre existiram outras coisas que me ocuparam o pensamento e aquilo foi-se mantendo ali.
Depois, entretanto, por causa do site conheci o Atreya [Smith], que trabalhava com o Frawley. Uma vez, ele veio cá em Portugal e eu estive com ele e, depois disso, já estive com ele por causa de uma outra pessoa com quem aprendi e ainda aprendo, a Ganga. E, então, ele introduziu-me ao Frawley. O Frawley foi uma pessoa muito generosa comigo, permitiu-me estudar com ele e eu comecei a fazer esse estudo do Yoga e do Āyurveda. Eu já tinha estudado livros do próprio Frawley e quando comecei a estudar esses livro encontrei as respostas para aquilo que procurava. “É igual praticar no Inverno ou no Verão? (com o calor é uma coisa, com tempo seco é outra)”; “porquê que eu me sentia melhor com determinados tipos de prática?”; “a propensão que cada pessoa tem e que nem sempre é aquilo que a pessoa precisa” e, nesse sentido, acho que isso sedimentou a minha pratica de Haṭha Yoga e a minha forma de ensinar o Haṭha Yoga. Acho que hoje tenho alguma capacidade de ensinar com outra consistência. O Frawley diz muito isso: “existe uma diferença entre o professor de grupos e aquele que sabe ensinar Yoga de um-para um”. Hoje, acho que, obviamente com todas as limitações, consigo ensinar isso, de um-para-um; aquilo que este indivíduo precisa e não aquilo que uma série, ou um padrão a distribuir por toda a gente [impõe]... “Yoga à la carte”. [risos].

YV – De onde veio o teu interesse na massagem Thai Yoga?

MH – Originalmente, o interesse na massagem Thai Yoga veio devido ao meu pai. O meu pai teve uma doença da qual veio a falecer e, muito cedo, ele perdeu uma série de movimentos. Eu via que não o conseguia ajudar porque ele não conseguia praticar, e, tinha a ideia que se eu soubesse fazer alguma coisa o podia ajudar. Uma vez cruzei-me com o Thai Yoga e achei aquilo incrível! Não só por ele mas por todas aquelas pessoas que são um bocado preguiçosas e no fundo aquilo é o Yoga passivo. A história do Thai Yoga até engraçada: diz-se ter sido criada por um médico, que foi médico de Buda, e que era médico ayurvédico - originalmente, Thai Yoga está ligado ao Āyurveda, embora poucas pessoas o saibam. A expansão do Budismo pela Ásia aquilo tenha ido para outros países e se tenha sedimentado depois na Tailândia onde se fundiu com algumas técnicas de massagem que existiam lá. No fundo, eu queria aprender mais sobre a manipulação do corpo das pessoas. O meu foco sempre foi o Yoga, sempre tive isso claro, procurei nunca me afastar do Yoga. Enquanto eu estiver dentro do Yoga estou seguro, não invento coisas. Então, percebi o Thai Yoga, dentro da tradição do Yoga, como aquilo que me poderia dar melhor essa ferramenta. A Choenzom Emchi veio a Lisboa e eu fui estudar com ela e fiquei amigo dela e vamos falando sempre.

YV – E o futuro para o Miguel Homem?

MH – O futuro... a Gaṇeśa pertence! [risos]. A minha ideia é continuar a ensinar. Eu espero ensinar até ao último suspiro. Eu adoro ensinar e acho que até ganho vida com o ensino. Poder passar o Yoga é um privilégio. Eu, de facto, sou um entusiasta do Yoga e do ensinamento porque a charada da existência humana está resolvida no Yoga. Eu não sei se noutro lado ela foi resolvida, talvez sim talvez não, mas aqui foi. Às vezes os ensinamentos morrem, ficam ali num texto e não existe ninguém que saiba o que aquilo significa para poder transmitir. Por isso, é que muitas vezes, os estudos académicos são estéreis... conseguem-se fazer doutoramentos e mestrados mas aquilo não muda as pessoas. O ensinamento do Yoga está vivo e com pessoas a passar isto. De maneira que, para mim, ser... enfim, talvez seja audácia minha dizer que sou um elo nessa cadeia, mas dentro da minha limitação esforço-me por ser, é um privilégio, é aquilo que me realiza e é aquilo que eu vejo como sendo o meu dharma também. Nasci nestas circunstâncias, neste país onde isto não é assim tão divulgado, vejo para mim essa missão de continuar a ensinar e continuar a organizar cursos e os meus retiros.

YV - Houve alguma coisa que faltou dizer?

MH - Há uma série de pessoas que contribuíram para que eu esteja aqui a ensinar. Uma delas é a Maria que foi quem me levou ao Yoga e que durante os últimos anos me apoiou e incentivou e incentiva sempre. Embora hoje não tenha quase ligação ao Luís Lopes, o primeiro professor é uma pessoa por quem eu ache que deva haver uma reverência – aquela pessoa mostrou-nos o Yoga. Mesmo que eu hoje olhe e ache que talvez existisse uma limitação naquela pessoa a ensinar, aquela pessoa naquele momento ensinava o que para ela era válido e aquilo foi válido para mim também, durante um tempo, e graças àquilo, eu pude descobrir o resto. E, por isso, eu sou imensamente grato ao Luís. E ao Dada, que veio a seguir, e à Cláudia de quem me tornei bom amigo e somos os dois colegas a praticar. O Pedro é uma referência, sem dúvida, para mim e sou-lhe eternamente grato. O Tomás Zorzo é uma pessoa por quem eu tenho uma empatia enorme e é uma referência para mim. O Tomás é uma pessoa que eu admiro porque é uma pessoa que tem uma compaixão enorme e é um exemplo na prática. Nesse sentido, de exemplo na prática, ele é uma pessoa que me inspira e, sem dúvida, a pessoa que mais me inspira é o Simão. A existência de uma pessoa como o Simão é uma coisa que me motiva porque tem essa disciplina, esse compromisso com ele mesmo, e tenho uma admiração grande por ele. Tenho uma dívida enorme com o Svāmi Dayānanda e com o Svāmi Paramārthānanda, que uma outra pessoa com quem eu aprendo pelo exemplo e por tudo aquilo que falamos antes. Existe uma pessoa com quem eu aprendi e aprendo que pouca gente sabe – a Ganga [Decoux]. A Ganga foi discípula de Papaji e foi também mulher dele. Eu conhecia-a, por causa do Atreya, e é uma pessoa com quem vou estando, a cada ano. E é alguém me lembra uma coisa importante: “Mokṣa não é algo para se buscar, é aquilo que já é. A existência do buscador nega a existência do buscado, no momento presente”. Enquanto a pessoa se vê como um buscador a pessoa nunca vai ver aquilo que está ali. Por isso, no ensinamento uma pessoa passa por uma fase dvaita [dualidade] para passar a uma fase advaita [não-dualidade]. A pessoa constrói um castelo para depois negar aquilo. E o nidhidhyāsanam é, no fundo, a pessoa negar o jīvatvam, essa noção do indivíduo. Durante, não sei quanto tempo, uma pessoa constrói para si aquele requisitos, viveka, vairāgya, śamādiṣaṭkasampatti e mumukṣutvam e depois a pessoa nega esse sādhanacatuṣṭayam como qualquer coisa que precise, pois a pessoa precisa de olhar e ver aquilo que é agora. Mokṣa deixa de ser esse desejo por libertação e passa a ser reclamar para mim mesmo essa natureza. Ela é uma pessoa que me lembra disso e me inspira, por isso, gostava de fazer esse reconhecimento. E, finalmente, a Ana com quem eu vivo é também uma inspiração para mim, não só pela força que me dá sempre, pela motivação, mas até pela sugestões – este curso agora de Meditação foi por sugestão dela e ainda bem que o fez pois isto que escrevi e preparei foi uma coisa que faltava falar - e nessa partilha diária uma pessoa cresce muito e, sem dúvida aprendo bastante com ela. A Ana é uma ajuda silenciosa constante. Muito do que faço hoje é graças a ela. Poucos talvez notem que tirando eu e o Pedro, ela é a pessoa que contribui com mais textos para o Dharmabindu. Agradeço a essas pessoas e todas as que me esqueci agora e me foram ajudando.

Final da segunda parte da entrevista. Para ler a primeira parte clique aqui.

Entrevista por Gustavo Cunha para YogaVaidika.com.

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