O impacto do Yoga no Ocidente - Gustavo Cunha

Do ponto de vista histórico, é sempre importante datar os acontecimentos, mas, a própria datação é um assunto polémico entre as comunidades científicas. Isto porque alguns autores ou historiadores viram a cara a evidências mais recentes e insistem em manterem-se fiéis às suas afirmações, mesmo sendo consideradas pelos peritos como erradas e ultrapassadas. De qualquer forma, como sustentação cronológica que este texto propõe são utilizados dados provenientes de escavações arqueológicas no vale do rio Indu, na atual Índia, lugar da antiga civilização védica, onde as práticas ascéticas seriam comuns. Isto, tendo como referência as figuras humanas retratadas em selos e artefactos recuperados daquele lugar que representam yogis em posições sentadas utilizadas para a prática de abstração dos sentidos, concentração e meditação ou contemplação.

Assim sendo, foi Charles Masson quem primeiro descreveu as ruínas de Harappa, em 1842, no seu trabalho “Narrative of Various Journeys in Balochistan, Afghanistan, and the Punjab”, muito embora tenha sido apenas quase um século depois, em 1921-1922, que Sir John Huber Marshall e seu grupo descobre, de facto, vestígios de civilizações com cerca de 5000 anos: a civilização Harappa e a civilização Mohenjo-Daro. A importância destas escavações está no facto de revelarem um povo incomum, bastante sofisticado para a época, tanto em termos urbanos e culturais como em termos científicos, filosóficos e religiosos. As evidências apontam para uma civilização avançada em planeamento urbano com complexos sistemas sanitários, esgotos e drenagem. Entre os achados preciosos descobertos no local, contam-se esculturas e selos que denotam um interesse em retratar fielmente a figura humana, que antecede os Gregos, e, ainda, cerâmica e joalharia em ouro e bronze.

Sabe-se, também, que toda a civilização do Vale do Indu era possuidora de um sistema de cálculo decimal muito preciso em termos de medição de distância, massa e tempo. Max Müller (1823-1900), linguísta alemão, com um interesse especial pelo Oriente, nomeadamente, pela Índia, é amplamente citado dizendo o seguinte[1]:

"No tempo mais primordial, quando as pessoas da Europa saltavam como chimpanzés, de árvore para árvore e de galho em galho, quando não sabiam como tapar os seus corpos a não ser com folhas de figueira, não conheciam a agricultura e viviam da caça e moravam em grutas, nesse passado remoto, os Indianos tinham atingido uma civilização superior e deram ao mundo filosofias universais na forma dos Vedas."

De facto, as antigas escrituras indianas, os Vedas[2], corroboram a ideia de Max Müller sobre uma civilização extraordinária e nelas encontramos, por exemplo, referências a localizações astronómicas de sete planetas deste sistema solar no Ṛg Veda:

"Que os cinco touros [planetas] que se destacam no meio do céu poderoso, tendo em conjunto rapidamente levado os meus louvores aos deuses, retornem. Marque esta minha aflição, ó Terra e Céu. Bṛhaspati [Júpiter], quando primeiro surgiu com esplendor fulgurante no céu supremo, forte, com a boca sétupla, com voz de trovão, com os seus sete raios, soprou e dispersou as trevas. Vê-de, Vena [Vénus], nascido na luz, aqui tem conduzido, em carruagem no ar, os bezerros de Pṛśni, cantores com hinos acariciam-no como um bebé lá onde as águas e a luz do Sol se misturam. Vena elabora a sua onda de fora do oceano. Nascido da névoa, as costas daquele que é claro tornam-se visíveis. Brilhante, ele permaneceu na cimeira da Ordem: os anfitriões cantaram glória à sua terra natal comum (…) conhecendo a sua forma, os sábios ansiavam por se encontrarem com ele (...)"[3]

É necessário salientar que os Vedas foram sendo passados oralmente de geração em geração, desde tempos imemoriais, através de regras muito restritas de memorização e vocalização. São conhecidos vários métodos inteligentes de mnemónica utilizados pelos sacerdotes brahmaṇa, encarregues de ensinar os textos sagrados à geração seguinte, porque essa forma de ensinamento ainda acontece hoje em dia no seio das famílias mais tradicionais. Assim, não é possível datar a criação exata desses hinos nem, tampouco, apontar os seus criadores individuais. De resto, nunca foi essa a preocupação do povo indiano, mas, preservar completamente intacta e inalterada a mensagem.

De acordo com a tradição, o próprio ensinamento vem com o início da criação e aquele que o expôs primeiro é chamado de Dakṣiṇāmūrti[4], uma manifestação de Śiva[5], aqui encarado como o primeiro professor, a própria Sabedoria, o mestre (guru) de todos os mestres, aquele que venceu a Morte através do Conhecimento e que a olha de frente (para o Sul, considerado um ponto cardeal desfavorável) enquanto ensina os seus discípulos:

विश्वं दर्पणदृश्यमाननगरीतुल्यं
निजान्तर्गतं
पश्यन्नात्मनि मायया बहिरिवोद्भूतं यदा निद्रया ।

यः साक्षात्कुरुते प्रबोधसमये स्वात्मानमेवाद्वयं
तस्मै
श्रीगुरुमूर्तये नम इदं श्रीदक्षिणामूर्तये ॥१॥

"O Universo é o reflexo de um espelho. A verdade é o supremo Brahman, aquele sem segundo. A mente, sentidos e intelecto são apenas capazes de discernir o reflexo de Ātman. A identidade de Brahman é visível após a auto-iluminação. Eu ofereço as minhas profundas saudações ao auspicioso Guru, que é a encarnação de Dakṣiṇāmūrti, e cuja graça é responsável pela iluminação."[6]

Os sábios da Índia antiga, denominados ṛṣis, intuíram esse Conhecimento – a unidade do indivíduo com o Todo – através da prática prolongada de Yoga e meditação, e transmitiram-no adiante, daí que eles próprios não são tidos como os autores propriamente ditos dos Vedas, apesar do papel preponderante na preservação desse entendimento e sua proliferação.

Vários sábios são destacados e a eles cabe um papel de relevo para a projeção desse corpo de conhecimento. O mais importante é, certamente, Veda Vyāsa a quem se atribui a função de compilar os Vedas, e o autor do Mahābhārata, o maior épico Sânscrito, com mais de 100.000 versos. Se os Vedas são a fonte de inspiração da filosofia indiana, mais concretamente as Upaniṣads, os textos finais de cada Veda e por isso chamados de Vedānta, o Mahābhārata é a narrativa com que o povo se identifica, pois, toda a história que relata a trama dos antigo clã dos Bhāratas está cheia de ensinamentos práticos e claros: a clássica luta do bem contra o mal, a exposição dos efeitos nefastos dos vícios e pecados e a exaltação do poder positivo e construtivo das virtudes e seus benefícios para uma vida longa e justa. E, é nos exemplos do dia-a-dia das personagens dessa dinastia, das suas expectativas, das suas ações, meritórias ou condenáveis, e no recebimento dos frutos provocados pelas ações, que o povo se inspira para manter vivo o espírito do Sanātana Dharma[7], comumente referido como Hinduísmo: tudo é Deus, portanto, tudo sem exceção é divino e sagrado. Qualquer ação contrária a essa visão do mundo é contrária ao Dharma[8], e, logo, desadequada.

Convém esclarecer o leitor que uma tradução possível da palavra Yoga, é “união”, no sentido de “ligação” ou “conexão”[9]. Esta tradução por “união” está a par da famosa citação latina de Juvenal: “Mens sana in corpore sano”[10]. O que significaria que o Yoga procura estabelecer uma harmonia entre o bem-estar físico e mental, o que, geralmente, vai de encontro às expetativas dos buscadores ocidentais. Uma outra tradução possível é definida por Monier-Williams, (1819-1899) professor de Sânscrito, no seu dicionário Sanskrit-English Dictionary, “aplicação ou concentração de pensamentos, contemplação abstrata, meditação”.

Esta visão influencia grandemente os pensadores Ocidentais, como Oppenheimer, que cita a Bhagavad Gītā aquando da detonação da primeira bomba atómica no Trinity Test, no Novo México:

"Se a a luz de mil sóis explodisse ao mesmo tempo no céu, isso seria como o esplendor do todo poderoso." (...) "Agora tornei-me a Morte, a destruidora de mundos."

Mas, Oppenheimer não foi o único a sentir a força das palavras das escrituras indianas. Nikola Tesla foi fortemente influenciado pelas palavras de Svāmi Vivekānanda e pelas ideias védicas sobre matéria e energia tendo chegado a usar termos Sânscritos nas suas teorias. Heinrich Zimmer, outro pensador famoso, indólogo e historiador de profissão, afirmou o seguinte:

"Nós, no Ocidente, estamos prestes a chegar à encruzilhada com que se depararam os pensadores da Índia cerca de 700 anos antes de Cristo. Esta é a verdadeira razão porque nos sentimos perturbados e estimulados, inquietos e, no entanto, interessados quando confrontados com os conceitos e imagens da sabedoria Oriental." [11]

Ralph Waldo Emerson (1803-1882), ensaista e poeta, deixa bem claro nos seus escritos que a influência vedantina está presente no seu pensamento:

"Vivemos em sucessão, em divisão, em partes, em partículas. Entretanto, no homem está a alma do todo; o sábio silêncio; a beleza universal, com a qual cada parte e partícula está igualmente relacionada, o UM eterno. E este poder profundo no qual existimos e cuja beatitude é toda acessível a nós, não é apenas autosuficiente e perfeito a cada hora, mas o ato de ver e o que é visto, aquele que vê e a cena visível, o sujeito e o objeto, são um. Vemos o mundo peça a peça, como o sol, a lua, o animal, a árvore;mas o todo, do qual estas são partes brilhantes, é a alma."

Na tentativa de Carl Jung para entender a psique humana, há uma consideração especial pelo aspeto espiritual que o afasta de Freud. Jung chega mesmo a viajar até à Índia e a estudar Hinduísmo e Budismo como parte da sua jornada rumo à mente humana e seus mistérios, o que o leva a um internamento num hospício por delírio.

Arthur Schopenhauser, filósofo alemão, escreve o seguinte acerca das Upaniṣads e Vedas:

"Se o leitor também tiver recebido o benefício dos Vedas, acesso ao qual conseguido através das Upanishads, que é aos meus olhos o maior privilégio que este ainda jovem século (1818) pode reclamar antes que todos os outros séculos, então o leitor, digo eu, recebeu a sua iniciação na primitiva sabedoria indiana, e tendo-a recebido de coração aberto, estará preparado da melhor maneira para escutar aquilo que tenho para lhe dizer. Não lhe soará estranho, como a muitos outros, muito menos contestável; embora eu possa, se não ter soar presunçoso, afirmar que todas as afirmações soltas que constituem as Upanishads, possam ser deduzidas como um resultado necessário dos pensamentos fundamentais que eu tenho de enumerar, embora estas mesmas deduções não se encontrem aqui."[13]

Aldous Huxley (1894-1963), proeminente escritor inglês, foi outro pensador que encontrou nas palavras dos Vedas um eco das suas ideias sobre realidades além dos “cinco sentidos” e num significado da vida para além da satisfação dos sentidos. Huxley delicia-se com os ensinamentos de Krishnamurti e Svāmi Prabhavānanda ambos vedantinos e consagrados professores espirituais da tradição indiana. Esteve associado à Vedanta Society of Southern California, escreveu a introdução a "Bhagavad Gita: The Song of God", traduzida por Swami Prabhavanada e Christopher Isherwood e contribui ainda com 48 artigos para Vedanta and the West.

Erwin Schrödinger (1887-1961) foi outro pensador que mostrou interesse na filosofia dos Vedas. Considerado um dos pais da mecânica quântica, recebeu um Prémio Nobel aos 40 anos e em “What is Life?” aproxima-se do pensamento védico nas suas especulações acerca da possibilidade da consciência individual ser apenas uma manifestação de uma consciência unitária que rege o universo.

Inúmeros exemplos poderiam ser exaustivamente citados, mas, penso que estes já são suficientes para mostrar o interesse de figuras relevantes do Ocidente nas escrituras sagradas indianas.

Certo é que, segundo dados da revista norte americana com maior tiragem no mundo - Yoga Journal - em pleno século XXI, a ciência do Yoga ganha cada vez mais adeptos, já que, mais de 70.000 novos professores de Yoga se formam a cada ano que passa nos EUA, para satisfazer a procura crescente por uma espiritualidade que preencha o vazio que o ser humano sente numa sociedade que o atirou para o individualismo e isolamento dada a falência da Igreja, como é evidente através dos sucessivos escândalos que vão corroendo a fé Cristã. Porém, a Índia e o Yoga estão recetivos.

Em Portugal passa-se o mesmo. Escolas surgem como cogumelos, abrindo uma atrás da outra, onde menos se espera. Avós e netos praticam lado a lado, alheios (talvez!) ao significado profundo da disciplina do autoconhecimento mas participantes num fenómeno internacional. Se a Índia é um mercado de 1 bilião de pessoas que qualquer marca deseja conquistar, então, o mundo é um mercado muito maior para o Yoga, com os seus 6 biliões de possíveis clientes, isto é, adeptos. Veja-se a exemplo o mais recente filme protagonizado por Julia Roberts "Comer, Orar, Amar", uma adaptação cinematográfica baseada no best-seller autobiográfico de Elizabeth Gilbert, em que se narra a história de uma americana rumo aos āśrams, gurus e devas indianos onde encontra a afável e sempre sorridente espiritualidade indiana. Esta é a Índia do Yoga, de Buda e Gandhi, exemplos máximos de humildade, paz e iluminação, que serve de refúgio e consolo abençoado aos buscadores que a ela chegam de alma perdida ou destroçada.

Imagem de topo propriedade de Himalayan Academy, usada sob licença Creative Commons.

[1] Extraído de um antigo panfleto da editora HMV.
[2] A palavra Veda significa “conhecer” ou “conhecimento”.
[3] Ṛg Veda: 1105.10, 4.50.4 e 10.123, sânscrito, 1500 a.C.; tradução de GRIFFITH, RALPH, 1896.
[4] Dakṣiṇāmūrti é a forma do Senhor que olha para o Sul. Dakṣiṇā significa Sul e mūrti traduz-se como forma. Os templos dedicados a esta divindade são frequentes na Índia.
[5] Śiva ocupa o lugar do destruidor ou renovador na trindade Hindu, cabendo o cargo de criador, propriamente dito, a Brahma, e, o de preservador a Viṣṇu. Śiva é também apelidado de “o Benigno” ou “ a Consciência”, dependendo do contexto.
[6] Śrī Dakṣiṇāmūrti Aṣṭakam:1, sânscrito,  ĀDI ŚAṄKARĀCĀRYA, séc VIII, tradução de RAMACHANDER, P.R..
[7] O Dharma Eterno.
[8] Dharma é um termo de difícil tradução, pois, não há uma palavra equivalente em Português que abranja todos os significados e toda a riqueza que a palavra na sua origem contém. Porém, poderíamos definir Dharma como aquilo que sustenta, que é a base ou o substrato de tudo o resto. Nessa perspetiva, Dharma é a Ordem, o conjunto de leis naturais e invisíveis que podem ser chamadas de Lei Universal. Como uma Lei Universal, ela é, por princípio, imparcial e infalível. Agir de acordo com o Dharma é prestar tributo e reverência ao Absoluto. É fazer o que tem de ser feito em detrimento da vontade particular, ou dos desejos egoístas individuais. O indivíduo deve abster-se de retirar um proveito para si próprio se isso for prejudicial à comunidade. Assim, o Dharma torna-se o agir corretamente, sempre em função dos outros; é a ação livre de expetativas de benefícios futuros para si, pois a atribuição dos resultados da ação pertencem a Deus, ao Controlador – Īśvara.
[9] Dicionário Sâncrito-Inglês, yoga, p. 856, MONIER-WILLIAMS, Oxford University Press, 1899
[10] Livro IV: Satura X, 355 JUVENAL, séc.
[11] Eastern Religious Thought - Hinduism, Inglês, volume 1 p. 17, editado por FRAZIE, ALLIE.
[12] The Over-Soul de Essays: First Series, 1841.
[13] The World as Will and Representation, p. 13, prefácio à primeira edição, 1818.

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