Música da Índia - Franklin Pereira

A música da Índia tem uma história milenar; inicialmente evoluindo em ambientes de templo e de escolas regionais, o seu “corpus” sonoro apresenta-se vasto, diversificado e em permanente criação e recriação. Entre os cordofones, sobressai a veena, com vários modelos representados em esculturas e iluminuras desde a alta Idade Média; por volta de 1500 estabelece-se um modelo-tipo, a rudra veena, a partir de duas grandes cabaças unidas por uma cana de bambu, com trastos fixos. Outros cordofones foram criados a partir das influências do Islão, como o sarod, sarangi, dilruba, surshingar e taus. Mais tarde, fruto da capacidade de absorção, veremos o violino, a viola slide e o violoncelo a serem admitidos como instrumentos dignos para a execução dos “ragas” clássicos.

A sitar, inicialmente decorrente dos seus antecessores persas, passou, em finais do século XIX, a contar com duas cordas-baixo, maior caixa de ressonância e braço mais largo; em breve iria eclipsar os instrumentos que lhe deram nova apresentação - como a rudra veena e o surbahar -, tornando-se o cordofone mais famoso para a perfomance do novo estilo de música denominado khayal ou khyal, mais colorido que o seu antecessor dhrupad.

Nos instrumentos plasmou-se, através da gramática da ornamentação, o vínculo de pertença a uma fé e a uma cultura.

Recorrendo ao património cultural da Índia e a uma visita final a uma aldeia de construtores de instrumentos no estado de Maharashtra, em elaboração há dois séculos, pode entender-se as minudências do fabrico e da ornamentação, por vezes revelando a troca de estéticas entre zonas afastadas, consequência da globalização dentro do próprio país.

Refiro ainda o trabalho de divulgação da música e imagens da Índia entre alunos dos jardins-de-infância e escolas do 1º ciclo neste ano lectivo, onde o desenho esteve presente.

INTRODUÇÃO
Em 1981, durante uma estadia na Índia por ano e meio, tive oportunidade de ouvir recitais de música clássica; em breve surgiu-me o desejo em aprender sitar, e procurei um professor na cidade de Poona, onde me encontrava.

O meu professor, Pandit Shreenivas Keskar, era cliente, por tradição familiar, da oficina Bharatiya Tantuvadya Kendra, situada em Miraj (300 km a sul). Foi daí que veio a minha primeira sitar, um modelo simples para estudante. Em Dezembro de 1981 visitei Miraj, tendo tido a oportunidade de ver um concerto, gratuito, como tantos outros que iria ver na Índia; para intensificar o estudo, mudei-me, mais tarde, para Benares, cidade monumental e um dos grandes centros da cultura desse vasto e diversificado país. Por períodos bastante mais curtos, voltei à Índia em 1985, 1989, 2004, 2007 e 2008, tendo continuado estudos de novo em Benares, Poona e Sangli; além da sitar, tive aulas de surbahar e rudra veena.

1. MÚSICA, MÚSICOS E RELIGIÃO

Contrariamente ao Ocidente (e não só), a música da Índia, além de repousar sobre milénios de evolução, inscreve-se na procura espiritual. O mais antigo instrumento de cordas – a veena, vina ou been –, tubular e com uma ou duas cabaças, é considerado sagrado, e o instrumento do deus Shiva (daí a designação de rudra, que é também outro nome desse deus); tocado como forma de meditação e acompanhante de orações, aparece representado em raras esculturas arquitectónicas da antiguidade, simbolizando a força criadora e o nascimento do Som. A chegada do Islão à Índia trouxe novos instrumentos, com a sehtar e o rabab, que iriam ser adaptados à música clássica. A sitar adquiriu a forma que ainda hoje possui só no século XIX; ao receber duas cordas-baixo, obteve um braço mais largo e cabaça maior, eclipsando os instrumentos que lhe deram origem – a rudra veena e o surbahar -, e tornando-se um instrumento muito divulgado para a execução completa do reportório clássico. As 11 ou 13 cordas solidárias que passam sob as 7 cordas superiores aumentam a sua riqueza sonora. Na música clássica indiana não é estranha a presença do misticismo Sufi, trazido com a estadia do Islão. A dinastia Mogol é tida como uma época de ouro para a música, e para as outras artes; além do mecenato, reformularam-se instrumentos e expandiu-se o reportório antigo, com um novo estilo – o khyal ou khayal - mais versátil que o austero estilo Dhrupad. Muitas iluminuras dessa época mostram os instrumentos da corte, ncluindo a rudra veena.

A divindade das artes e música, a deusa Saraswati, é representada tocando veena (modelo do sul da Índia); as celebrações religiosas indianas, de qualquer credo, não dispensam a música (clássica ou popular), e muitos santos hindus, sempre venerados, eram músicos e cantores. O yoga inclui também o Som, e a música é tida como veículo para realizar a Unidade, e atingir o Som sem Som, o pulsar cósmico; alguns ascetas indianos tocaram (e tocam) rudra veena. Muitos “ragas” têm pinturas que revelam, de um modo metafórico, o espírito ou ambiente que a sua execução – cantada ou tocada – convoca; essa colectânea de pinturas denomina-se “ragamala”, literalmente, o rosário dos “ragas”. Temos, assim, uma rede milenar de práticas religiosas e sonoras, que permanece nos dias de hoje, e uma herança musical diversificada. A música da Índia está construída para os vários momentos do dia, e de acordo com as estações do ano, com uma escala certa, frases versáteis características, e sentimentos, partindo da contemplação até atingir um êxtase final; acrescente-se a improvisação que cada “raga” exige, e percebe-se que a música é um corpo em construção, sempre com novas faces, fazendo parte de “gharanas”/linhagens de músicos que, por tradição oral, passam o legado à geração seguinte. Além disso, a Índia produziu novos instrumentos: a sitar (tal como agora a conhecemos) no século XIX, o surbahar e a vichitra veena também nessa época, a hamsa veena em finais do século XX; adaptou a guitarra slide à música clássica (agora com cordas solidárias e denominada mohan veena, por força do nome do músico, Krishna Mohan Batt, que alterou o instrumento), tal como fez com o violino e com o violoncelo.

É uma cultura que absorve, é criadora e transformadora, e mesmo a música clássica é música de fusão indomuçulmana; de facto, estamos perante uma multi-cultura, com épocas de incentivo e diálogo promovido pela administração.

2. A CONSTRUÇÃO DE UM INSTRUMENTO DE MÚSICA

Sempre me cativou a beleza dos instrumentos de música da Índia e, envolvido na história das estéticas e
artefactos, considerei ser possível centrar-me no trabalho oficinal. Durante uma estadia em Miraj, em 2007, dispensei uma parte para observar e registar como se constrói um instrumento de música clássica. Devo realçar a abertura e simpatia dos construtores – todos muçulmanos -, permitindo-me ver a construção em diversas fases, ter as questões respondidas, e aceder aos bastidores de uma arte de requinte.
As muitas oficinas de Miraj têm uma história bicentenária. Em inícios do séc. XIX, dois irmãos muçulmanos, Farid e Mohaddin Saheb, vindos do Sultanato de New Delhi, estabeleceram-se na aldeia de Miraj, a uns 500 Km de Goa. Iniciaram uma oficina de construção de instrumentos que, por ramificações familiares, deu origem a outras.

Apesar da existência de oficinas mais famosas em New Delhi, Calcutá e Bombaim, a produção de Miraj tem vindo a impor-se entre os músicos da Índia; fornece também alguns instrumentistas estrangeiros.
Graças à Internet, em 2003 contactei o actual “relações públicas” da oficina acima referida. Pretendia uma nova sitar, também “topo de gama” como uma outra, comprada em Benares em 1982; aproveitei a visita à exposição “Goa e o Grão-Mogol”, na Fundação Gulbenkian, para elaborar uma série de desenhos de linha mogol, pois, nessa dinastia, a música clássica teve grande incremento. Destinados a ser talhados e gravados nessa futura sitar, os desenhos foram enviados para Miraj.

Em 2004, o jovem construtor Shahid Ali entregou-me na cidade de Poona essa nova sitar, que tem sido a
que uso, com mais frequência, nos meus recitais em Portugal; em 2008, de novo em Miraj, encomendei, na oficina de Mehboob Abasaheb Sitarmaker (o sobrenome revela a profissão), uma sitar de mais fácil transporte: caixa de ressonância em madeira, muitas pegas como as da guitarra, e ornamento baseado no de uma sitar antiga do meu professor, dos anos de 1940.

As oficinas de construção de instrumentos continuam na “Mahatma Gandhi Road”, e artérias circundantes. O arcaísmo e trabalho manual permanecem os mesmos; creio que a diferença maior com a época antiga é o uso de cola branca de carpinteiro, em vez das colas vegetais, e o berbequim eléctrico. De resto, o aspecto das oficinas e as técnicas de construção são as mesmas de sempre.

Com portadas abertas para a rua, as oficinas são geridas por famílias, onde se integram cunhados, primos e sobrinhos. Funcionam geralmente como a frente da casa; uma porta leva para outras dependências e pátios internos. Não há salários, sendo o negócio gerido em cooperativa, com uma bolsa colectiva para as despesas do ofício e da família.

A actividade desenrola-se no chão; os pés ajudam as mãos a segurar a peça ou a ferramenta.
Em poucas linhas, a construção de um instrumento de cordas começa pela escolha da caixa de ressonância. A grande cabaça é cortada a metade (na vertical para a sitar e tambura, na horizontal para o surbahar), ou deixada inteira para a rudra veena (instrumento de raras encomendas). As cabaças são compradas a agricultores da zona, e deixadas vários meses a secar, empilhadas ou penduradas. Cada uma custa entre 1 e 3 €, e têm as dimensões (diâmetro) pintadas em polegadas.

O pescoço do instrumento é talhado (com uma “gola”) num bloco de madeira. É colado à cabaça, e fixo com pregos de madeira. Em torno do pescoço são coladas as folhas da futura ornamentação: partes de madeira fina, em forma triangular ou de arco gótico. Sendo oco, o braço do instrumento é talhado a partir de dois blocos de madeira, que irão encaixar. Um outro encaixe entra no pescoço, onde irá colar. O tampo do instrumento é cortado a partir de uma tábua grossa, e colado às bordas da cabaça e ao extremo do braço oco. Todo o conjunto, amarrado por cordas, é deixado a secar. Temos o instrumento tosco, a passar à fase ornamental.

3. AS VIAGENS DO ORNAMENTO

Antigamente, o excesso de ornamento era reservado a instrumentos de luxo, usando osso, chifre de veado e madeiras de diferentes tonalidades, e, por vezes, pintura. Os motivos, tal como hoje, baseiam-se em rameados, flores e pássaros.

Alguns decénios atrás, os instrumentos começaram a servir como suporte a grandes extensões de ornamentação, talhada/esculpida com maior ou menor detalhe no tampo, no pescoço e pegas; a incrustação recorre, actualmente, a folhas de plástico branco duro, a ser inciso; só por encomenda é que se obtém incrustação em osso.

A cultura visual, o ornamento e as viagens implícitas são um tema cativante; no ornamento ficam gravados dados culturais de regiões, códigos de pertença a uma crença e a uma sociedade, a criatividade e a trocas de estéticas. Um levantamento correcto exige tempo e uma recolha em muitos centros, o que não realizei. No entanto, é possível considerar uma série de dados estéticos comuns a instrumentos fabricados em diversas zonas da Índia: padronização de folhagem e flores a ser talhadas, desenvolvimentos vegetalistas milimetricamente incisos no plástico duro – saliente-se o ancestral motivo da Árvore da Vida, isolada ou ladeada por aves -, arcos contracurvados no topo do braço, pegas em botão de flor (lótus) ou espiral, pássaros (pavões) incrustados no tampo, são elementos partilhados entre oficinas, em que a mobilidade dos instrumentos (e dos músicos) permanece o veículo de propaganda.

A estilização floral mais ou menos abundante na frente e pescoço do instrumento permite considerar as
bases de inspiração: a vinha, outras folhagens, e um estilo chamado “Hemraj” (que também é nome masculino), definido por grandes folhas espalmadas, que é típico de Miraj. Houve e ainda se faz, por encomenda, uma ornamentação “folk”, regional, definida por pequenas flores em rameados serpentinos, realizada em osso ou chifre de veado, anterior ao uso do plástico duro. O recurso milenar aos elementos da Natureza repousa numa sociedade arcaica e de base agrícola; os elementos vegetalistas significam bom augúrio, felicidade, saúde e boas colheitas, significados estes que se entrelaçam com os negócios, a vida social e religiosa, e aparecem em todas as artes.

A fase final implica furar o braço para a colocação das pegas em madeira (elaboradas pelo torneiro, e esculpidas na oficina), a fixação de barras curvas de metal (os trastos) com fios de seda, e a colocação da ponte em chifre de veado, sobre a qual passam as cordas. Esta ponte é o coração do instrumento, e o seu polimento é uma técnica preciosa.

O preço das sitars varia conforme a qualidade do som, da matéria-prima e a ornamentação; há modelos dos 60€ aos 400€.

4. FESTIVAIS E INSTRUMENTISTAS

Além das diversas oficinas, sempre prontas a acolher qualquer turista ou repórter, Miraj oferece ainda uma série de pontos de interesse: a arquitectura simples – mas não simplória – de aldeia, com pequenos templos ou nichos para os deuses; muitas mesquitas – a população é 50% muçulmana –, tempos hindus, uma igreja a necessitar de restauro, um novíssimo templo Jaina, pátios entre casas, o grande mercado de Laxmi Market, e, sobretudo, o mausoléu de Pir Sayyid Shamma Mira, pregador muçulmano do séc. XV, aqui falecido; no cemitério a seu lado está o túmulo de Abdul Karim Khan, famoso cantor clássico que residiu e faleceu em Miraj. Esses dois factos são a razão da existência de um festival anual de cinco grandes noites de música, das 22h ao nascer do sol: duas noites de “qawwali” (música divulgada no Ocidente pelo cantor Nusrat Fateh Ali Khan, já falecido, e que vivia no Paquistão), com grupos regionais e uma audiência de peregrinos; seguem-se três noites de música clássica, de intérpretes jovens e menos jovens. O festival é grátis, não há programa escrito, não há aplausos, os músicos não recebem cachet, e Miraj está em festa, com feira em torno da grande mesquita. É enorme a confusão de comes e bebes, das lojas de rua, das TVs a passar imagens de música devocional e sufi, de peregrinos, de gente a cumprir promessas. O festival dista uns 5 minutos de três hotéis, e acontece em finais de Julho/inícios de Agosto. Só este facto – um festival clássico num templo, ao lado da algazarra das ruas – mostra como a Índia é mental e criativamente vasta e acolhedora.

5. A DIVULGAÇÃO DE OUTRA CULTURA

No ano lectivo de 2009-2010, o meu projecto de um Clube Itinerante de Imagens e Música da Índia foi aceite pelo Conselho Pedagógico do Agrupamento do Trigal (perto de Braga), onde lecciono; assim, fui requisitado por sete jardins-de-infância e duas turmas do 1º ciclo para apresentar e comentar imagens das minhas viagens, e um pouco de música; mais tarde incluí um pequeno kit de especiarias. O mesmo programa foi realizado na minha escola, aquando das actividades de final de ano. Ressalte-se o interesse e curiosidade dos alunos, a capacidade em colocar questões (algumas fantásticas e absurdas!) e a aura de magia que uns minutos de música provocam. Por vezes a minha sessão era seguida de desenhos inspirados nas imagens; de repente, vejo que alguns alunos/alunas, de 5 anos, fixaram a pinta de cor na testa de uma indiana, a faixa amarela de um sari colorido, a entrada de um templo ou a forma estranha do instrumento tocado.

Para terminar, há que considerar que 500 anos de Descobrimentos deram-nos a nós, portugueses, muito pouco, a nível de conhecimentos das outras culturas, ainda tidas como exóticas e distantes; o seu estudo académico é ainda incipiente, ressalvando os bons exemplos que aparecem de vez em quando. Dir-se-ia que a permanência entre continentes e comércios vários pouco ou nada deixou no país.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Deneck, Marguerit-Marie. (1969). Indian Art. The Colour Library of Art/Hamlyn: Londres, 1969.
Educação. (2008). A Educação do Príncipe: obras-primas da colecção do Museu Aga Khan. Aga Khan Trust for Culture/Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 2008.
Miner, Allyn. (1993). Sitar and sarod in the 18th and 19th centuries. Performing Arts Series/Motilal Banarasidass: Benares, 1993.

Franklin Pereira é Professor de Educação Visual desde 1986, e esteve sete vezes na Índia, onde viveu ano e meio seguidos; começou a aprender sitar em Poona, em 1981, e continua com os estudos da música clássica da Índia; toca em Portugal desde 1983. No ano lectivo de 2009-2010, foi mentor do Clube Itinerante de música e imagens da Índia em jardins de infância e escolas do 1º ciclo acoplados ao Agrupamento de Escolas do Trigal (Tadim-Braga), onde lecciona.

Republicado em www.YogaVaidika.com com a permissão do autor Franklin Pereira. Imagem de topo propriedade de Franklin Pereira, usada sob licença Creative Commons.

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