O Primeiro Livro de Yoga - Stefanie Syman

A Bhagavad Gita influenciou grandes figuras históricas, desde o filósofo Thoreau até Oppenheimer, o pai da bomba atómica. A sua mensagem de que há que se desprender dos frutos das próprias ações é tão relevante hoje como foi há 2.000 anos, quando foi escrita.

A Bhagavad Gita atraiu a atenção dos ocidentais em geral e dos americanos em particular quase desde o primeiro momento em que se descobriu a partir de uma tradução inglês de meados do século XIX. Podes encontrar a Gita nalgumas das obras mais famosas e reverenciadas da literatura e filosofia americanas, desde o poema de Ralph Waldo Emerson, Brahma, até Four Quartets, de T.S.Eliot, sem mencionar canções pop britânicas.
A Gita é o sexto livro do Mahabharata, um dos poemas épicos indianos mais famosos. Não é muito clara a data da sua composição, mas muitos consideram-na a primeira escritura yóguica completa. Por estranho que pareça, este antigo texto procedente de uma cultura estrangeira entusiasmou os ocidentais. A Gita, como todas as grandes obras de literatura, pode ler-se a nível metafísico, moral, espiritual e prático, e é esse o seu atrativo.

Diálogo de alto nível
Para quem não teve o prazer de a ler, a Gita, recompila um diálogo entre Arjuna, um dos príncipes Pandava, e a deidade hindu Krishna, que neste épico serve como cocheiro de Arjuna. Arjuna e os seus irmãos foram exilados do reino de Kurukshetra durante 13 anos e afastados da sua herança legítima por outra fação da família. A Gita faz eco da sua luta para reclamar o trono, o que requer que Arjuna inicie uma guerra contra a sua própria família, fazendo ostentação das suas consideráveis habilidades bélicas.

A história começa nas poeirentas planícies de Kurukshetra, onde Arjuna, um famoso arqueiro, está preparado para o combate. Mas duvida. Dispõe-se a lutar contra os seus amigos, professores e familiares, e crê que essa luta – e possivelmente a morte – contra aqueles homens pressupões um grande pecado, e que não pode trazer nada de bom, ainda que recupere o trono. Krishna repreende-o pela sua cobardia – Arjuna pertence a uma casta guerreira acima de tudo, e supõe-se que os guerreiros tenham de lutar –, mas, em seguida, apresenta-lhe um exercício espiritual para combater os seus inimigos, um exercício que engloba uma discussão sobre os yoga karma, jnana e bhakti, e sobre a natureza da divindade, o destino último da humanidade e a finalidade da vida mortal.

Poemas prestados
Obra de intensidade luminosa e cintilante, a Gita oferece o que Henry David Thoreau descreveu como “uma filosofia estupenda e cosmogónica... Em cuja comparação o nosso mundo moderno e a sua literatura parecem insignificantes e triviais”. Ainda que os diferentes pensadores, poetas, escritores de canções, professores de yoga e filósofos que foram seduzidos pela Gita não tenham feito eco de nenhuma ideia em particular nem a transplantaram à nossa cultura ocidental, três temas principais parecem ter intrigado os seus leitores: a natureza da divindade; o yoga, ou as várias formas de estabelecer contacto com a divindade, e finalmente, a resolução do conflito perene entre a renúncia ao mundo – frequência considerado o caminho mais rápido para a iluminação espiritual – e a ação.
Tomemos com exemplo o ensaísta e porta norte americano Waldo Emerson. Em novembro de 1857, Emerson fez uma das declarações mais dramáticas a respeito da Gita que se podia imaginar. Escreveu um poema intitulado Brahma para o tema inaugural de The Atlantic Monthly. A primeira estrofe diz:

Se o matador pensa que mata
E o morto pensa que foi morto
É que não sabem o que ata
Em meu caminho o reto ao torto. (1)


O poema deve muito à Gita e à Katha Upanishad. O primeiro verso parece ter sido recompilado quase literalmente do capítulo II [verso 19] da Gita, quando Krishna tenta persuadir Arjuna a lutar. “Aquele que considera este (Eu) como o matador e aquele que o considera como o matado, ambos não conhecem. Este não mata, nem é matado” (2). Se se interpretar juntamente com umas linhas que aparecem depois: “Sou o sacrifício; sou o ofício” e “Ele é também o meu servente amado... em quem a oração e a culpa são uma”, tem muito que ver com o poema de Emerson.

Deidade criadora
O surpreendente deste poema, quiçá pouco conhecido para os leitores modernos, é a diferença radical que esta conceção da divindade era da consideração principal de Deus, e inclusive do Deus Unitário e indulgente das religiões liberais que influenciavam ao redor da vida de Emerson.
Brahma, o poema, era uma meditação sobre o que na atualidade chamamos Brahman, ou o “Absoluto, que se encontra por detrás e acima de todas as diferentes divindades, seres e mundos”. Nos tempos de Emerson, os nomes usados para definir esta ampla ideia inclusiva da divindade e o nome da divindade criadora da trindade hindú apenas se distinguiam, mas a sua descrição e fontes penetraram-no profundamente. Emerson não estava simplesmente a substituir uma trindade por outra. Estava a celebrar uma ideia de um Deus que dava vida a tudo (tanto o matador como o morto) e que dissolvia todos os opostos (“A sombra e o sol são o mesmo”).
Se levada a sério, esta versão da divindade pode supor tanto um alívio tremendo (se Brahman está por detrás de tudo, os humanos têm muito menos culpa do que consideramos) como algo incrivelmente assustador (o que ocorreria à moral se a “sombra e o sol”, o bem e o mal, são o mesmo?).

Um deus horrível e grandioso
Na Gita, a articulação mais poderosa desta ideia provém, não do segundo capítulo, do qual o poema de Emerson faz eco, mas do décimo primeiro, quando Krishna revela a Arjuna a sua verdadeira natureza. Para tal, concede a Arjuna o dom da visão mística, pois é impossível ver Krishna em toda a sua glória com o olho carnal.
O que Arjuna vê é uma imagem multiforme que apenas se pode descrever. Não tem limites, contém todos os mundos e divindades e é assombrosamente belo, com adornos e joias – ornamentos celestiais –, e arde com o calor de mil sóis. Ao mesmo tempo, este ser é aterrador já que tem incontáveis braços, ventres, bocas e olhos, e brande armas divinas. Mais horroroso ainda: Arjuna viu como milhares de criaturas entravam em sua boca e eram trespassados pelos seus dentes, milhares de inimigos de Arjuna no campo de batalha. Arjuna vê como este ser “incendeia os mundos... devorando-os com bocas flamejantes”. Ou seja, vê um holocausto e violência sem fim, sem que possa intervir com nenhuma força conhecida pelo ser humano. Arjuna quase desmaia.
Foi o ser rosto verdadeiro, ao mesmo tempo glorioso e horrível, o mesmo que J. Robert Oppenheimer invocou num dos dias mais fatais da história, 16 de julho de 1945. Oppenheimer dirigia a equipe de cientistas que detonou a primeira bomba nuclear. Ao observar a violenta bola de fogo sobre o deserto do Novo México, Oppenheimer citou Krishna no momento em que revela a sua verdadeira natureza como Vishnu: “Converti-me na morte, no destruidor dos mundos”. A Arjuna faltaram-lhe palavras diante a visão da natureza destrutiva de Vishnu, mas a Gita proporcionou a Oppenheimer uma linguagem descritiva do poder da bomba atómica.
O registo foi recordado em muito artigos, livros e filmes. E, desta forma, Oppenheimer verteu um pouco da escritura yóguica nas mentes das gerações posteriores. Na realidade, estudava a Gita há muito tempo. Uma experiência que considerou muito positiva. (3)

A esperança está no yoga
Mas, o que aconteceria se todos nós pudéssemos ver a divindade? Krishna deu a Arjuna como presente um olho divino. Há esperança para nós e está no yoga. A Gita pode ler-se como um guia de utilizador para vários tipos de yoga, todos eles conduzem à iluminação e libertação. Thoreau considerou esta possibilidade tão atraente que tentou praticar yoga baseando-se apenas na leitura da Gita e outros textos indianos traduzidos.
Quando escreveu Walden (1850), Thoreau somente tinha umas ideias precisas sobre o yoga, que colocou no seu ensaio como se narrasse uma parábola hindu. Nela, o ensaísta americano conta a história do artista Kouroo, possuidor de uma rara capacidade que lhe permitia concentrar-se por completo num único ponto, e que se dedicou a esculpir um bastão de madeira perfeito.
Passou uma eternidade para o terminar mas o artista tinha feito “a criação mais bela de Brahman graças à sua devoção a esta tarefa simples. Tinha criado um novo sistema na fabricação de bastões.

O jogo do despertar
Mais recentemente, pessoas como Ram Dass e professores de yoga têm usado, através de uma versão mais acessível, ao elemento prático da Gita. Durante o verão de 1974, Ram Dass, que foi professor de psicologia em Harvard até 1963, leccionou um curso denominado Yogas da Bhagavad Gita. Ram Dass leu (e ensinou!) a Gita como exercício espiritual, e levou os seus estudantes a lerem esta obra, pelo menos três vezes, com uma perspetiva mental ligeiramente diferente em cada ocasião. Também deu exercícios baseados na Gita que podiam evoluir até uma sadhana [prática] completa. Incluía a escrita de um diário, a meditação, o kirtan (cânticos) e até “ir à igreja ou templo”.
Durante o curso, Ram Dass, removeu as diferentes capas da Gita, uma após a outra, mas resumiu-a em termos gerais: “Trata sobre o jogo do despertar, sobre como aceder ao Espírito”. Nesse contexto, apresentou os yogas karma, jnana e bhakti como diferentes, ainda que completamente inter-relacionados, formas de jogar esse jogo. O yoga karma era, segundo a formulação de Ram Dass, um mandato: “Faz o teu trabalho, mas sem te vinculares”. Para além de se desvincular dos frutos das tuas ações, disse, também deves atuar “sem pensar que és o ator”.

Encontrar a inspiração
O historiador James A Hijiya argumenta que este ensinamento da Gita resolve o enigma da carreira de Robert Oppenheimer: criou uma bomba que conferiu o seu uso para destruir Hiroshima e Nagasaki e converteu-se numa figura importante da guerra nuclear. Do mesmo modo que Krishna insistiu que renunciar às ações era muito pior assumir atos disciplinados, assim Oppenheimer afastou a torre de marfim e a sua ilusão pelo projeto de Manhattan.
De acordo com Hijiya, Oppenheimer acreditava que os cientistas deveriam atuar desinteressada mas efetivamente no mundo, e disse: “Se és cientista, crês que é bom entregar à humanidade o poder maior possível para controlar o mundo”. A Oppenheimer nunca afetou o que ele considerava o seu dever profissional, e foi bastante capaz de se desvincular, pelo menos a curto prazo, das suas terríveis consequências. Ele acreditava que cabia à humanidade, e não a ele, a responsabilidade de controlar o poder que ajudou a criar, “de acordo com as suas luzes e valores”.
Que pensadores, poetas e professores de yoga tenham encontrado tanta inspiração na Gita durante mais de um século, realmente é um atestado do seu incrível poder espiritual.


Este artigo foi publicado na Revista Yoga Journal Espanha número 8 (ano 2006) traduzido, e editado, para português por Gustavo Cunha.

1 - Tradução de Augusto de Campos
2 - Tradução de Glória Arieira
3 – Suprimiu-se uma suposta opinião de Einstein acerca da Bhagavad Gita pela possibilidade de ser falsa.

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