Cecilia Bastos - Em Busca do Sentido da Vida

Foi com imensa satisfação que obtivemos licença da autora para publicar no blogue do Centro Vaidika o artigo "Em busca do sentido da vida: a perspectiva de estudantes de Vedanta sobre uma vida de Yoga" de Cecilia Bastos, pesquisadora em Antropologia Social no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, e aluna da Gloria Arieira desde 2011. Segue, assim, abaixo, o artigo na íntegra. Boas leituras.

O objetivo deste artigo é retratar o universo de estudantes do Advaita Vedanta em torno de uma questão que podemos chamar de “busca” por um sentido na vida1. Portanto, retrata o trabalho de campo que tenho realizado, desde 2009, junto a um grupo de alunos que estudam Vedanta em uma associação cultural sem fins lucrativos chamada Vidya Mandir, localizada no Rio de Janeiro, na qual ocorrem aulas ministradas pela professora Gloria Arieira, que aprendeu o ensinamento durante quatro anos e meio em um ashram2 na Índia, na década de 1970. Desde sua volta ao Brasil, ela se dedica a ensinar o aprendizado nessa associação, chamada por seus alunos apenas de “Vidya”3.

Este grupo de alunos consiste de estudantes universitários, aposentados, psicólogos, cineastas, engenheiros, chefs de cozinha, empresários, astrólogos, biólogos, terapeutas, tradutores, filósofos, escritores, dermatologistas, professores universitários, designers, entre outros4. É grande a presença de professores de yoga5 e meditação ali, sendo que muitos destes realizam outras atividades profissionais paralelas ao ensino de yoga e meditação, como forma de sustento. A maioria participa de outros grupos de práticas, inclusive como professores, e busca ali uma fonte de aprendizado para passar a seus alunos. É importante ressaltar que esse seguimento de busca, para alguns, pode se transformar em um caminho profissional em termos da sociedade contemporânea brasileira. Isso é algo interessante, pois nem todos os seguimentos/ caminhos de busca permitem esse tipo de experiência – da dimensão da profissionalização –, que pode ser na direção da profissionalização dos recursos do yoga como atividade, hermenêutica e de modificação dos estados corporais, mas também na direção de como a professora Gloria promove uma vida espiritual (o que depende de quem a vê e de como: se apenas como uma professora ou como guru).

Grande parte do grupo já realizou ao menos uma viagem à Índia com o intuito de aperfeiçoamento nas técnicas de yoga e meditação e/ou aprofundamento do aprendizado de Vedanta; para este último objetivo, viver alguns meses ou anos em um ashram foi fundamental para vivenciar e assimilar o ensinamento enquanto imerso na cultura indiana. Quase todos possuem curso superior completo ou em andamento, estando inseridos nos contextos das camadas médias urbanas da sociedade brasileira, e foi neste sentido que verifiquei a possibilidade de traçar um paralelo do grupo pesquisado com os “nativos” estudados por Gilberto Velho (1981, 1998)6.

Apesar de haver no grupo pessoas de diferentes crenças, como católicos ou espíritas, a maior parte se considera “sem religião” ou hindu. Essa questão é bastante controversa e precisa de algumas linhas explicativas. A professora Gloria Arieira sempre enfatiza que Vedanta é um “corpo de conhecimento” que pode ser utilizado por qualquer religião e que foi incorporado ao hinduísmo, mas não necessariamente o oposto. Dessa perspectiva, Vedanta seria “além” de qualquer crença religiosa, no sentido de poder ser ensinado como uma “filosofia” apenas; mas percebe-se que, após alguns anos de estudos, a maior parte dos alunos tende a encorporar7 a religião hindu, que é a que tem o Vedanta como inspiração. Isso significa que alguns dos alunos mais antigos acabam desenvolvendo uma inclinação a se considerarem “hindus”, com todas as aspas necessárias, pois para um hindu ortodoxo isso não seria possível, já que não há conversão ao hinduísmo, que se trata de uma religião de nascença (questão que será desenvolvida adiante).

O hinduísmo, ao contrário do que se pensa, não se constitui de uma religião8 apenas, mas sim de uma coleção multifacetada de seitas, tradições, crenças e práticas que se desenvolveram dos Vedas e que tomou forma sobre o subcontinente indiano ao longo de muitos séculos. Além de não possuir um “fundador”, o hinduísmo também não tem uma autoridade central ou hierarquia, pois se baseia na tradição védica e tem os Vedas como autoridade última (Bastos 2014). Trata-se de uma cultura complexa, que representa variados símbolos, crenças e práticas que compõem diversas “subtradições”, conectadas em vários aspectos, e é neste sentido que o hinduísmo deve ser compreendido: enquanto um estilo de vida. Mais do que uma religião, é um conjunto de religiões contendo elementos de tradições e religiosidades compartilhadas que têm se influenciado continuamente através dos tempos, e que juntas contribuíram para formar a cultura da Índia. Desse modo, o hinduísmo se alinharia mais a um modo de viver, e não a um credo definido.

Lipner (1994:8) descreve o hinduísmo como um fenômeno fundamentalmente cultural, no sentido de que a pessoa (hindu de nascença) não precisa ser religiosa para ser aceita como tal por hindus, ou se descrever como hindu – ela pode ser politeísta ou monoteísta, monista ou panteísta, até mesmo agnóstica, humanista ou ateísta e ainda ser considerada “hindu”. O autor diz que o “todo” do hinduísmo forma uma rede, microcosmicamente policêntrica, quer dizer, tendo muitos centros, mas macrocosmicamente uma, cobrindo, no tempo, um espaço de milênios. A metáfora de uma árvore com muitos galhos e ramos representa bem a condição de não existir um fundador, tal qual um tronco, do qual os vários ramos proliferam; diferente de um “modelo botânico”, o “modelo hindu” não é uniforme, mas constituído de uma rede de variedades na qual o todo forma uma unidade na diversidade, um processo sempre a adaptar-se a novas circunstâncias, já que, à medida que algumas raízes e ramos crescem, há, consequentemente, constante renovação e crescimento.

Considerando-se hindus ou não, a maior parte dos alunos pesquisados tem como objetivo a busca espiritual, que envolve as categorias nativas que qualificam a pessoa apta a estudar o Vedanta: austeridade, simplicidade e atenção às pessoas são aspectos do envolvimento grupal; eles se engajam em atividades no espaço do Vidya Mandir e se relacionam com os fenômenos do dia a dia com bom senso; não há teólogos ativos ali, e são em sua maioria introspectivos, tendo se condicionado a uma natureza mais meditativa; interpretam a mensagem do Vedanta no sentido de que eles, como seus porta-vozes, devem assimilar o máximo possível do ensinamento e não tentar se tornar hindus ou converter ninguém ao hinduísmo. Alguns professam crença em Brahman9 e performam práticas diversas com a intenção de preparar a mente para o estudo e a consequente liberação. A maior parte professa diferentes níveis de fé nos deuses e deusas hindus, enquanto alguns criam uma mistura de diversas religiões; e ainda outros não acreditam em deus algum, mas apenas estudam as escrituras védicas. A maioria, independentemente de suas crenças, tenta viver uma vida de yoga da melhor maneira possível.

Viver uma “vida de yoga” significa desenvolver certas qualidades humanas entendidas como espirituais, que se tornam bastante valorizadas, tais como ser simples, ter calma e, acima de tudo, discernimento, no sentido de saber qual atitude estaria de acordo com o dharma (fazer sempre o que é correto ou adequado em cada situação, ou o que seria o dever de cada um). Yoga, para o grupo, significa unir-se, quer dizer, integrar a mente com as ações: o que se pensa deve estar integrado ao que se fala e a como se age. Viver uma vida de yoga é tentar realizar este exercício a cada momento. Por exemplo, se alguém diz que vai fazer algo e não faz, isto é visto negativamente e a pessoa aos poucos vai perdendo a credibilidade junto ao grupo. Outro exemplo que presenciei foi uma “novata” que chegou a uma das aulas valorizando suas qualidades “físicas”, falando que sabia fazer muitas posições (físicas) de yoga, algo que não é relevante para o entendimento da yoga “praticada” pelo grupo. A política de ser um yogi, então, forma um lócus para a análise antropológica por ser uma função do viver uma “vida de yoga”, embora bastante personalizada.

No espaço do Vidya não há muita oportunidade de mostrar seu “status” de ter cumprido com o compromisso de uma vida de yoga, então os yogis têm que se contentar em utilizar esse exercício de forma “mental” apenas, como parte de seu esforço em internalizar-se, voltar-se para dentro, “um exercício para baixar o ego”, como dizem. Se alguém quisesse provar que possui qualidades espirituais, isto envolveria a realização de práticas espirituais, como meditar, por exemplo; mas a prática mais importante envolve assistir às aulas e estudar; também mostrar disposição ao “sacrifício” em relação a si mesmo, doando seu tempo e cuidado aos outros; acima de tudo, a aquisição do conhecimento vedantino deve ser prioridade, e o estudo se torna a atividade principal realizada pelo grupo.

Diferentemente do grupo analisado aqui, os grupos Siddha Yoga e Sivananda Centres estudados por Véronique Altglas (2007) enfatizam aspectos práticos ao invés de conteúdos filosóficos, especialmente cantos de mantras e práticas físicas de posturas de yoga, e a maior parte dos discípulos entrevistados pela autora possui uma relação ambígua com o hinduísmo, não se sentindo confortável com referências a símbolos e crenças hindus. “Em suma, práticas e crenças disseminadas por Sivananda Centres e Siddhartha Yoga são adotadas sem considerar seu sentido original. Essa interpretação é embasada no fato de que muitos percebem o contexto hindu de suas trajetórias espirituais como uma dificuldade, já que a maior parte alegou não ser importante para eles e expressou indiferença” (Altglas 2007:233, tradução nossa).

Altglas considera que a eclética busca espiritual de seus interlocutores se baseia na ideia de que as religiões compartilham uma verdade única e universal enquanto suas diferenças visíveis seriam superficiais e ilusórias; essa crença na universalidade da religião, diz a autora, levou “discípulos” a “apagarem” dimensões culturais e históricas das religiões, e ela acredita que isto explicaria o motivo da não importância, para a maior parte deles, de ser um “seguidor” ou “simpatizante” de um movimento de base “hindu”, julgando, assim, que sejam indiferentes às pluralidades culturais10 (Altglas 2007:235).

Um importante critério para escolha de um guru por devotos, segundo Warrier (2003:42, tradução nossa), seria o estilo do seu discurso:

Alguns buscadores preferem o discurso extremamente simples e espontâneo de gurus como Mata Amrtanandamayi e Satya Sai Baba, que capturam a imaginação de seus devotos com suas simples histórias, anedotas e parábolas. Mata Amrtanandamayi, por exemplo, transmite seus ensinamentos de maneira bastante direta e frequentemente de forma emotiva, evitando abstrações e termos em sânscrito normalmente encontrados em discursos espirituais de outros gurus. Não devotos quase sempre acham o estilo dos discursos de Mata Amrtanandamayi exageradamente infantil e simplório e preferem os discursos espirituais de outros gurus mais eruditos como os do falecido Cinmayananda. Oconteúdo dos discursos de Cinmayananda se derivou quase sempre de antigos textos em sânscrito e forneceu sua interpretação destes versos e passagens em particular. Seus discursos foram marcados por uma tendência bem mais intelectualmente rebuscada e muitas vezes até mesmo obscura em comparação com o simples oratório de Mata.

Fica evidente a partir das conclusões de Altglas e Warrier que meus interlocutores apresentam divergências em relação a outros grupos de referência neo-hindu, especialmente quanto ao entendimento e consequente laço de pertencimento. Muitos vedantinos não apenas se consideram devotos, mas desejam “abraçar” a cultura hindu como identidade, como veremos adiante.

O estudo da Bhagavadgita e Upanishads

O grupo confere importância especial ao estudo de textos sagrados hindus, tanto as Upanishads, que fazem parte dos Vedas, como também ao estudo da Bhagavadgita, considerada como o texto que inclui todo o ensinamento das Upanishads em um único livro. Esses textos, que estão escritos em sânscrito védico, ensinam basicamente sobre o conhecimento do Eu, sobre a “ordem cósmica” e sobre a “consciência”. Os Vedas são compostos por quatro livros, divididos em duas partes: a primeira, que trata de rituais a serem realizados (ou seja, de ações a serem feitas), é considerada a parte “religiosa” dos Vedas, enquanto que a segunda (Vedanta), a que o grupo estuda, não descreve nenhum tipo de ação a ser realizada; trata-se de algo “a conhecer” e é a parte que poderíamos chamar de “filosófica”. Essa segunda parte dos Vedas, composta de mantras escritos em sânscrito, trata do conhecimento do Absoluto, livre de limitação, e é com base no ensinamento a respeito da relação entre o Absoluto (Brahman ou consciência) e o Eu (atma) que o ethos do estudante de Vedanta é construído. O ensinamento, então, consiste na explicação de textos e está baseado tanto na tradição oral quanto na relação mestre/discípulo, aluno/professor, já que “escutar” é o ato primordial deste estilo tradicional de aprendizado11.

A filosofia do Vedanta consiste em entender que a pessoa é “livre” do samsara, que se compreende pelo ciclo de sucessivas reencarnações no qual as pessoas passam por períodos de altos e baixos, felicidades e tristezas. O samsara é concebido como a vida de alegrias e tristezas, satisfações e depressões, e todas as ações realizadas para repetir o que agrada e evitar o que não agrada; ou seja, é este movimento, esta oscilação constante. A primeira parte dos Vedas descreve como lidar com o samsara: a pessoa pode fazer uma meditação, cantar mantras, mas considera-se que esses rituais não oferecem uma solução definitiva. Em contrapartida, na segunda, Vedanta, o assunto é o Eu que é “livre” do samsara.

Dentro desse estudo, há um aspecto bastante ressaltado, principalmente na Bhagavadgita (conhecida popularmente apenas como “Gita”), que é o preparo da mente para o estudo de Vedanta, e o aprendizado de uma vida de yoga torna-se fundamental como uma filosofia/estilo de vida para os estudantes. Trata-se de uma perspectiva em termos da mente, ou melhor, de um distanciamento em relação a ela: a pessoa deve ser consciente de que a mente é estimulada por tudo à sua volta e está agitada (categoria nativa) com problemas diários, mas se a pessoa consegue se distanciar da mente, ela não seria mais afetada pela agitação ou pelos problemas que a ocupam. Existe a crença de que, se existe esse distanciamento, a mente não preocupa mais a pessoa, independentemente do estado mental no qual ela esteja. O curso da Bhagavadgita ensina um estilo de vida baseado no equilíbrio emocional e mental da pessoa, no qual as situações que ocorrem em sua vida não devem “desequilibrá-la” mentalmente, ou seja, do ponto de vista dos interlocutores, a pessoa já é a consciência e plenitude (que busca ser), apesar das situações boas ou ruins em sua vida; nesse sentido, tudo o que acontece em sua vida é encarado como uma situação de aprendizado, pois existe a crença de que todos os eventos que ocorrem estão de acordo com uma ordem cósmica que tudo governa – principal atitude referente à importância de uma vida de yoga e que envolve outra categoria muito valorizada, a do devoto12.

Devido à experiência de poder vivenciar enquanto aluna13 os aprendizados dos cursos, pude aprofundar-me na relação com os vedantinos, através de entrevistas e da observação participante durante nove anos consecutivos de convívio junto ao grupo, a fim de conhecer um pouco de suas trajetórias de vida, sobre o que pensam a respeito de Vedanta e como vivenciam este ensinamento. Ao longo desse período, constatei que a maior parte das pessoas se considera devota (como já dito, uma categoria nativa). A classificação de devoção, nesse caso, envolve o entendimento de que tudo o que acontece estaria de acordo com a ordem cósmica: ideia segundo a qual existe uma ordem em tudo, conforme o depoimento de um “nativo”: “você vê que existe uma ordem na natureza, depois da primavera vem o verão, as fases da lua que influenciam as marés, cada semente deve ser plantada em certa época do ano, e com o ser humano não é diferente; é a lei do karma que rege esta ordem, tudo o que a pessoa planta, ela colhe”. Na prática, observei que existe uma espécie de confiança na ordem dos acontecimentos, um entendimento de que tudo o que vem para a pessoa tem um significado e está de acordo com a ordem. Ou seja, mesmo quando algo que entendemos como “negativo” (a pessoa não passar na prova, ou perder o ônibus, ou o carro enguiçar, etc.) acontece com alguém, o devoto acredita que tal evento seja positivo, pois não era para ter acontecido de outra maneira, quer dizer, existe a confiança de que tudo está dentro da ordem.

O devoto é alguém que se considera satisfeito em viver uma vida de yoga. Sua vida é definida por imperativos filosóficos, no sentido de viver de acordo com uma filosofia de vida, uma orientação particular para uma maneira de se viver. Assim, a devoção é considerada como um valor em si mesmo: estar unido à ordem cósmica (ou a si mesmo) é uma atitude que é sua própria recompensa. Para viver uma vida de yoga, é necessário estudo e a aquisição de certa capacidade de pensamento e conduta corretos; com isso, o devoto busca liberar-se da ignorância do samsara. A principal característica do devoto é que ele não precisa viver uma vida severa, cheia de rigor, mas a única “austeridade” praticada é confiar na ordem. Sua vida não implica renunciar à família ou sair da sociedade, apenas transformar sua visão, que agora incluirá a ordem a todo o momento. Para tal, não há necessidade de praticar qualquer ação em particular, pois a atitude seria uma maneira de viver, na qual o ritual estaria incluído, bem como meditar e estudar, pois ele ajuda a manter a devoção, ou união consigo mesmo; entretanto, os rituais são considerados secundários em relação ao objetivo último, a liberação. O devoto deve manter-se desapegado de seus gostos e aversões, mas acima de tudo desapegado de suas reações ao que a ordem traz para ele, concentrando-se em unir-se (seu pensamento unido à sua fala e à sua ação) em uma atitude de humildade e total confiança nessa ordem.

Tornando-se “hindu”

Apesar de grande parte se considerar devoto, quase todos têm consciência de seu lugar na sociedade brasileira e lutam com o problema de se encaixar nas categorias religiosas aqui institucionalizadas. Entre estes, verifica-se a existência de pessoas que se consideram “convertidas” ao hinduísmo (apesar de, tradicionalmente, essa conversão não ser possível) e que inclusive estão “inseridas” em uma casta, pois são considerados brâmanes dentro desta tradição de ensinamento. Max Weber (1958:6) explica que quem poderia ser considerado hindu é quem pertence a uma “estrita religião de nascença”, meramente por ter nascido de pais hindus. De qualquer forma, o hinduísmo é “exclusivo” no sentido que, de nenhuma outra maneira, o indivíduo pode fazer parte de sua comunidade, pelo menos do círculo daqueles considerados religiosamente qualificados. Segundo Weber, o hinduísmo não deseja abranger a humanidade, não importa qual seja sua crença ou modo de viver – qualquer um não nascido um hindu permanece um outsider, para o qual os valores sagrados do hinduísmo são, em princípio, negados. Por outro lado, Weber sugere que, uma vez estabelecido, o poder de assimilação do hinduísmo é tão grande que ele tende a integrar formas sociais consideradas além de suas fronteiras religiosas.

Esta foi, de certa forma, a principal questão encontrada em campo: como entender os devotos pesquisados que se consideravam hindus? Do ponto de vista dos entrevistados, o estudo do Vedanta parece lhes oferecer um amplo entendimento do significado de hinduísmo e, dessa forma, eles entendem esse conhecimento como “filosofia de vida” e até como “projeto” (Velho 1994)14.

A noção tradicional de conversão está associada, por exemplo, às tradições do cristianismo e do islamismo, que têm o aspecto “salvacionista”, por fazerem com que as pessoas deixem suas religiões para se tornarem adeptos da nova “verdade” e da nova religiosidade. Esta é a típica noção de conversão como é tratada dentro da cultura ocidental, e de maneira até mais ampla por incluir mesmo o Islã. Esta literatura tem sido muito discutida no Brasil devido à questão das “conversões” ao pentecostalismo e às religiões evangélicas populares (Mariz 1999). A palavra conversão remete a uma noção complexa, pois se trata de algo mais amplo do que passar de uma condição X para outra Y. Acredito que palavras como adesões, passagens, deslizamentos designam uma série de aproximações possíveis, não sendo imperativo o uso deste modelo de “conversão” ocidental, como no caso do grupo pesquisado.

É interessante notar que, embora o ritual de conversão não esteja inteiramente ausente, há poucos que expressam um rompimento com o passado ou demonstram o tipo de mudança “depois que comecei a estudar Vedanta tudo está sendo perfeito”. Ao invés, a liberação pode ser encontrada na forma de absorção de um conhecimento espiritual, que se trata definitivamente de uma abordagem mais vertical ao divino. Todavia, uma pessoa com necessidade de conversão pode ser acomodada. Muitos frequentadores praticam uma variedade de costumes indianos, e, apesar de não serem desencorajados, há certos limites para além dos quais essas práticas não vão. Devido a isto, penso sobre a possibilidade de outro sentido que poderia ser atribuído ao termo “conversão”, tal como é utilizado dentro do campo da religião. A transformação pela qual dizem passar (enquanto um processo) me parece ser um aspecto bem mais complexo do que abandonar sua religião de origem e se “tornar hindu”, o que aponta para uma compreensão mais profunda das relações entre religião e contemporaneidade. Portanto, a questão mais imediata que surge dentro desse universo se resume em: até que ponto se pode falar de conversão? Aparentemente não se trata de conversão no sentido convencional do termo, e sim de algo que merece mais entendimento e qualificação.

Convertidos ou não ao hinduísmo, a mudança mais reveladora pela qual passam meus interlocutores é a de visão. Observei que a transformação é entendida não como uma mudança física, mas como uma mudança de visão de mundo. De acordo com o Vedanta, a aquisição do conhecimento traz uma visão das situações (principalmente “negativas”) como algo necessário para o amadurecimento emocional do indivíduo, e é desta forma que o conhecimento proporciona uma base que auxilia a superar o sofrimento. Dessa perspectiva, o devoto é entendido como aquele que busca não se dominar por um padrão de reação: ele procura adquirir a capacidade de segurar os impulsos (e os desejos), entender os “erros” como oportunidades para amadurecer para, assim, possuir uma mente que passou por um processo de amadurecimento (ou de questionamento). Os estudantes de Vedanta são pessoas que, em face do questionamento quanto ao sentido da vida, se propõem a ser buscadores. Ao buscar compreender o significado desse tipo de religiosidade hindu junto ao grupo, principalmente durante a análise de suas trajetórias de vida, deparei-me com a questão mais profunda da busca por um sentido na vida, outra categoria nativa, já que eles se consideram buscadores. Entendo que a compreensão dessas questões pode esclarecer aspectos importantes das novas formas de religiosidade na contemporaneidade.

Peter Berger e Thomas Luckmann (1996) contribuem para a discussão da “perda” de sentido experimentada pelos indivíduos que vivem nas sociedades complexas, nos países industrialmente desenvolvidos – aqueles onde a modernização atingiu seu auge e a forma moderna de pluralismo progrediu. Eles propõem que os sistemas de valores e reservas de sentido dessas sociedades deixaram de ser patrimônio comum de todos os seus membros, já que o indivíduo cresce em um mundo em que não existem valores comuns que determinem a ação nas diferentes esferas da vida. Muitos vedantinos que entrevistei buscam um sentido para suas vidas ao se associarem ao Vedanta e ao hinduísmo, após terem se desiludido com os sistemas de valores da sociedade brasileira e ocidental15.

A desilusão com o mundo moderno e os sistemas de valores é muito mais antiga, pois, desde meados do século XIX, já havia um crescente desencantamento, conforme indicava Weber (2004), mas isto certamente se acentua no horizonte “pósmoderno”. Carlos Brandão (1994), ao tratar desse assunto, enfatiza que os sistemas e instituições não parecem ter mais o mesmo sentido para o sujeito “pós-moderno”. A partir dessas premissas, é fundamental compreender os motivos de tal alienação, tanto em relação às instituições quanto aos valores que sustentam as sociedades complexas (Velho 1980, 1998). No caso brasileiro, verifica-se a crescente tendência de um grupo específico da sociedade a se considerar “sem religião” (Sanchis 2008, 2009). Mas a questão que desperta o interesse dos pesquisadores desta área é em que sentido esses indivíduos se consideram não religiosos, ou ainda, será que o que querem dizer é que não acreditam nos antigos sistemas de valores? Ressalto que os valores que estão sendo contestados não são apenas religiosos, a desilusão é muito mais abrangente, trata-se de um desencanto com o capitalismo, com a psicanálise, com a arte moderna, etc.16

De acordo com Mircea Eliade (1992), historiador das religiões, tanto a moralidade como a questão dos valores estão em crise devido à herança que nossos antepassados nos deixaram. Segundo ele, o homem “a-religioso” descende do Homo religiosus e constitui-se a partir de situações assumidas por seu predecessor, sendo fruto de um “processo de dessacralização”. Desta perspectiva, ele se constitui por oposição ao seu antepassado e luta para se liberar de todo significado religioso. Em suas palavras, “o homem profano, queira ou não, conserva ainda os vestígios do comportamento do homem religioso, mas esvaziado dos significados religiosos. Faça o que fizer, é um herdeiro” (Eliade 1992:98). O autor adverte que o sujeito moderno não deve abolir completamente seu passado, já que ele mesmo é produto desse passado – apesar de ter dessacralizado o mundo de seus antepassados ao adotar um comportamento contrário àquele que o antecedia, “ele sente que este comportamento está sempre prestes a reatualizar-se, de uma forma ou outra, no mais profundo de seu ser” (Eliade 1992:98). O homem “a-religioso” em seu estado puro, nos termos de Eliade, é um fenômeno muito raro, mesmo na mais profana das sociedades modernas, considerando que a maior parte dos “sem religião” ainda se comporta “religiosamente” (embora não esteja consciente disso); não se trata apenas de “superstições” ou “tabus” que ainda temos em nossa sociedade, mas de carregar “toda uma mitologia camuflada e numerosos ritualismos degradados” (Eliade 1992:98). Eliade propõe que uma possível solução para a moderna crise de valores se sustenta na religião, que não apenas “resolve” a crise, mas, além de impulsionar o sujeito a ultrapassar as situações pessoais, ainda torna a sua existência “aberta” a valores que não são contingentes nem particulares17.

A religião simboliza unidade da qual participamos, unidade que compreendemos não pela observação, mas habitando nela, conforme esclarece o sociólogo Robert Bellah (1976:255) – enquanto nem as igrejas nem nossa cultura secular parecem estar provendo os símbolos que evocam a unidade da vida e dão sentido à nossa participação nela, precisamos buscar o que em nossa ou qualquer cultura tenha feito este papel. Para ser maximamente eficaz, explica Bellah (1976:210-211), a devoção deve promover não apenas uma reordenação simbólica da experiência, e sim um elemento de consumação e realização: a experiência da devoção deve produzir um influxo de vida e poder, um sentimento de completude; se isto acontece, pode ocorrer uma mudança na definição da fronteira do Eu, uma identificação com tudo o que vive, e, acima de tudo, uma transformação da motivação, compromisso e valor que pode engajar não apenas indivíduos, mas a coletividade dos devotos. Assim, Bellah (1976:211) considera que a devoção envolveria uma regressão parcial do funcionamento defensivo normal do ego até que haja uma abertura maior para a realidade interna e externa.

Em busca do sentido da vida

Berger e Luckmann (1996) lembram que, à medida que se diminui o grau de condicionamento socialmente válido de interpretações compartilhadas da realidade, diferentes comunidades de vida podem se desenvolver de forma progressiva até se transformarem em comunidades de sentido quase autônomas e, enquanto essas comunidades demonstram uma relativa estabilidade, elas resguardam seus membros de possíveis crises de sentido. Apesar dessas comunidades não oferecerem a segurança das antigas comunidades de vida e sentido que estavam inseridas em ordens sociais de valores e sentidos, esses autores indicam que elas podem livrar o indivíduo de crises de sentido não manejáveis, por atuarem na contenção da expansão das crises de sentido na sociedade. É desta perspectiva e em consonância com esses autores que considero que a relação entre a perda (ou erosão) de sentido e a nova criação (reconstituição) de sentido pode ser observada mais claramente no caso da religião, que consiste na forma mais importante de um padrão global de experiências e valores, estruturado sistematicamente e com grande riqueza de sentido.

O pluralismo religioso, como defendem Berger e Luckmann (1996), faz com que o mundo, a sociedade, a vida e a identidade pessoal sejam cada vez mais questionados, pois podem ser objeto de múltiplas interpretações, e cada interpretação define suas próprias perspectivas de ação possível. Ou seja, nenhuma interpretação, nenhuma gama de possíveis ações pode já ser aceita como única, verdadeira e inquestionavelmente adequada. Portanto, aos indivíduos, ocorre a importante dúvida de se acaso não deveriam ter vivido suas vidas de uma maneira absolutamente distinta daquela vivida até agora. Para os autores, o que está convencionado corresponderia ao âmbito do conhecimento seguro e não questionado e, em contrapartida, a perda do que está convencionado perturbaria esse âmbito. Assim, o pluralismo sugere constantemente alternativas que obrigam as pessoas a pensarem, pois o ato de pensar dissolve os cimentos de todas as versões de uma existência não questionada. A diferença, apesar de ser ameaçadora por ferir nossa própria identidade cultural, nesse caso deve ser pensada enquanto alternativa, uma possibilidade que o outro pode abrir para o “eu” (Berger & Luckmann 1996).

É neste sentido que podemos dizer que o pluralismo se experimenta, por um lado, como uma grande liberação, como uma abertura de novos horizontes e possibilidades de vida que nos conduz a ultrapassar os limites do antigo modo de existência não questionado. Por outro lado, o mesmo processo costuma ser experimentado, geralmente pelas mesmas pessoas, como algo opressivo: como uma pressão sobre elas para que, de vez em quando, busquem um sentido aos novos e desconhecidos aspectos de sua realidade. Por fim, os autores afirmam que há quem suporta essa pressão e há outros que inclusive parecem desfrutá-la; são os que poderíamos denominar “virtuosos do pluralismo”, mas a maior parte das pessoas se sente insegura e perdida em um mundo confuso, cheio de possibilidades de interpretação, algumas das quais vinculadas aos modos de vida alternativos.

Ao interpretarmos o motivo da alienação do indivíduo ocidental como devido, entre outros, à interpretação de valores e crenças, fica clara a razão das crises existenciais na contemporaneidade. Como visto, uma possível “solução” para essa crise baseia-se no suporte oferecido pelas cosmologias religiosas. Acredito que a “ideia” do que seja religioso ou espiritual, aquilo que dá sentido à vida da pessoa, esteja no cerne do que representa a mudança do entendimento da religiosidade no mundo contemporâneo.

Colin Campbell, em seu artigo sobre a “orientalização” do Ocidente, escreve a respeito de um processo de orientalização na cosmovisão ocidental, cujo significado não está apenas na presença de religiões e produtos orientais no Ocidente, mas em uma mudança profunda no campo dos valores, a qual está relacionada diretamente às crenças e ideias orientais que estão se tornando parte do sistema de crenças ocidental, tais como o monismo, unidade corpo e espírito, iluminação, intuição, etc. Campbell (1997) caracteriza o modelo oriental pela visão da totalidade (holística), por uma procura pela síntese, pela valorização da subjetividade e do conhecimento intuitivo e dedutivo. De uma visão dualista, de um Deus separado do ser crente, vemos em alguns setores da sociedade uma incorporação da visão monista (ou “não dualista”, como preferem os estudantes de Vedanta), na qual o universo inteiro é dotado de sentido. Ele ainda indica que essa mudança também está relacionada à forma como entendemos a espiritualidade, que é vista como algo que pode ser alcançado através do esforço de cada um, tal qual um aperfeiçoamento de si.

De acordo com esse significado atribuído à espiritualidade, não é surpreendente o surgimento do que alguns consideram como “Novos Movimentos Religiosos” (Amaral 1999; Guerriero 2009; Soares 1990; Camurça 2003), certa reorganização das crenças pautadas em uma “hibridização” de elementos místico-orientais. No interior desses movimentos, aparece essa ideia de religiosidade “espiritualizada”. Uma característica é o aparecimento de novas categorias religiosas, entre elas, a de “espiritualizados, mas não religiosos”18. Este novo tipo de religiosidade parece ser eleito por pessoas que, ao abandonarem organizações religiosas formais, incorporam uma espiritualidade individualizada que escolhem dentre um campo de ofertas abrangente de filosofias religiosas “alternativas”. Penso se tratar de pessoas que entendem a espiritualidade como uma jornada intimamente ligada à busca de crescimento pessoal ou desenvolvimento (Nery 1998). A perda de sentido característica das sociedades complexas e a incorporação de uma espiritualidade individualizada por parte dos estudantes de Vedanta representam uma das manifestações do uso de um discurso oriental em sua cosmovisão, como propunha Campbell. Nesse caso em particular, observo que a cosmovisão “ocidental” está incorporando o discurso oriental ao vincular espiritualidade ao crescimento pessoal ou “amadurecimento emocional” (Bastos 2016).

A fim de entender a trajetória do grupo de estudantes de Vedanta e a função que os chamados “novos movimentos religiosos” ocupam na sociedade brasileira e no Ocidente, é importante voltar ao pensamento de Weber (2004). Na opinião desse autor, em seu livro A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, a trajetória do indivíduo ocidental é marcada por um desencantamento espiritual e uma perda fundamental do sentido e propósito de viver. Grande parte dos informantes descreveu uma trajetória espiritual que me parece ter sido impulsionada por uma busca da solução desse desencantamento e perda de sentido a que Weber se refere. É desta perspectiva que penso que eles tentam ressacralizar suas vidas ao se tornarem estudantes de Vedanta e, consequentemente, devotos.

O significado da devoção é compreendido por meus “nativos” como consequência de um total entendimento e encorporação do conhecimento19 do Vedanta em suas vidas. Ser devoto, segundo esta tradição, significa realizar a ação oferecendo-a à ordem cósmica, ou seja, o devoto é a pessoa que procura realizar a ação e receber seu fruto (o resultado da ação), entendendo que o fruto da ação é adequado a ela, pois acredita que há uma ordem cósmica que governa tanto a ação quanto seu resultado. Deste modo, não é necessário “transformar” nenhuma atitude, mas apenas tentar compreendê-la. Como já colocado, trata-se de uma questão de mudança de visão. É neste sentido que o devoto pode ser entendido, como aquele que renuncia sua ação à ordem cósmica e, desta forma, está livre do samsara, já que é o conhecimento que liberta o indivíduo de emoções confusas e de situações mal resolvidas (exatamente porque o indivíduo agora as “entende”).

A “ordem” do universo está sempre presente no grupo pesquisado. Mesmo que a pessoa a desconsidere, a diferença entre o devoto e o não devoto estaria na visão que ambos possuem da ordem que permeia todas as ações, quer dizer, o que causa a satisfação ou o sofrimento estaria relacionado com a visão de todas as situações que acontecem na vida da pessoa, e não realmente as situações em si. Por mais desconfortável que a situação seja, se o devoto entende que o que está acontecendo com ele é resultado de uma ação que fez no passado, da perspectiva do Vedanta, não existe um sentimento de injustiça e de sofrimento. A visão do devoto é de que o sentimento de opressão existe devido a uma alienação (desconhecimento ou ignorância, o samsara) em relação à ordem do universo. Nesse sentido, a questão fundamental para o devoto seria a seguinte: a menos que a mente tenha essa visão (conhecimento sobre a ordem cósmica), a pessoa não consegue se perceber como livre realmente. Um objetivo dos textos de Vedanta é discutir o significado da visão de Ishvara (considerado a ordem do universo, aquele que governa), ou, ainda, discutir o que é a visão de Ishvara (ou Içvara, para Dumont) e como obter essa visão.

Dumont (1992:332) explica que, no hinduísmo, a devoção deve ser compreendida da seguinte forma: o divino não é mais entendido no sentido de uma “multidão de deuses”, mas como um “Deus único e pessoal, o Senhor, Içvara, com quem o fiel pode se identificar, do qual ele pode participar”. Desta perspectiva, o termo “participação” tem o significado do sentido primeiro da palavra bhakti (devoção), e ao devoto “parece corresponder muito bem, linguisticamente, o termo Bhagavan, o Senhor Bem-aventurado, ou melhor, aquele cuja plenitude se abre à participação”. O autor afirma que a devoção total ao Senhor, ou seja, o amor, é suficiente para a “salvação” (ou liberação, como os informantes preferem), pois a “graça divina responde ao apelo de um coração humilde e puro. Doutrina revolucionária, porque transcende tanto as castas quanto a renúncia e abre a todos sem distinção um caminho fácil para a salvação” (Dumont 1992:332).

Tambiah (1990) lembra da sugestão de Lévi-Bruhl de que existe uma mentalidade mística presente em cada mente humana, mas que ela era mais marcada e mais facilmente observável entre os “primitivos” do que em nossos tempos. Essa experiência mística era tocada por uma emoção característica, que era o sentimento da presença e ação de um poder invisível, ou contato com uma realidade diferente daquela dada por circunstâncias reais e cotidianas. Ele argumenta que essas experiências de participação estiveram progressivamente sujeitas, no pensamento ocidental, à demanda por explicação em termos lógicos. Mas Lévi-Bruhl alertou que, em toda mente humana, qualquer que seja seu desenvolvimento intelectual, subsiste um fundo indelével de mentalidade “primitiva”, não sendo provável seu desaparecimento, pois, caso isso acontecesse, desapareceria a poesia, a arte, a metafísica e a invenção científica, ou seja, quase tudo que contribui para a grandeza e beleza da vida humana – por representar algo fundamental e indestrutível na natureza do homem (Tambiah 1990:91-92).

Essa ideia de duas ou mais mentalidades simultaneamente presentes na mente humana chamou a atenção de Tambiah, que substitui o termo mentalidade por “múltiplas orientações para a realidade” ou “ordens de realidade” a fim de incluir a construção social de significados e sistemas de conhecimento. Vejo aqui uma analogia entre o significado do termo participação e do entendimento da ordem cósmica vedantina. A participação pode ser representada, então, quando pessoas, grupos, animais, lugares e fenômenos naturais estão em uma relação de contiguidade, e traduzem essa relação em uma de instantaneidade existencial e de contato e afinidades compartilhadas. Tambiah (1990:107-108) usa o conceito indiano de darshan (ter a visão da deidade) como um exemplo de participação – a conexão entre pessoas, o sentimento de fazer parte de um grupo de relações que se constituem como pontes para a realidade da participação; e é nesse sentido de participação que tento entender a relação do devoto com a ordem, ou Ishvara.

Ishvara é “conhecimento”, revela um estudante de Vedanta, que o entende como sendo “o que faz as coisas acontecerem do jeito que são”, e também como “a causa de tudo o que está aqui”. O conceito de devoção, para o grupo, seria semelhante ao conceito de conhecimento (assimilado), no sentido de que a devoção viria como uma reposta a uma mente que tem o conhecimento. É a partir desse significado do entendimento da devoção como conhecimento que podemos observar esta afirmação de Dumont (1992:333): “A bhakti [devoção] da Gita é especulativa, intelectual como o clima em que nasceu, a efusão nela é comedida, o delírio dela está ausente”. Ou seja, segundo o autor, o devoto parece ser alguém que passou por um processo bastante “racional”, ou “especulativo” e “intelectual”, e sua devoção também parece ser “racionalizada”, ou “comedida”, sem “delírios”. O que pretendo demonstrar é que existe um tipo de racionalidade peculiar no sentido de renúncia implícita ao se viver uma vida de yoga.

Para os vedantinos que pesquisei, a renúncia tem um significado mais abrangente do que apenas renunciar ao fruto da ação. Eles entendem que a pessoa deve renunciar, na verdade, à reação ao fruto da ação, o que significa que quando o fruto da ação se manifesta, o devoto deve aceitá-lo como vier, seja algo que se tenha aversão ou se goste, ao invés de reagir negativa ou positivamente. Acima de tudo, consideram que seja a busca pelo conhecimento do “verdadeiro Eu” que constitui a forma mais alta de esforço (renúncia) humano. Os devotos são pessoas que reconhecem isto e buscam esse conhecimento. Ao analisarmos o Eu do devoto, é necessário deixar claro que a devoção enquanto uma ação é uma forma concentrada de yoga, e, nesse sentido, o devoto seria também um yogi.

De acordo com Dumont (1992:332), a devoção, denominada por ele como “a religião do amor”, foi uma “invenção” do renunciante, já que ela “supõe dois termos perfeitamente individualizados, e, para conceber o Senhor pessoal, foi preciso um fiel que se vê a si também como um indivíduo”. Segundo o autor, a Bhagavadgita revela a devoção e tornou-se a “bíblia” do devoto, ao oferecer “três vias de união ou disciplinas de salvação: a dos atos, a do conhecimento, a da devoção. As duas primeiras correspondem respectivamente à vida no mundo e à renúncia, mas elas se modificaram, se transmutaram pela intervenção da terceira” (Dumont 1992:332). A descoberta da devoção, para Dumont, permitiu ao devoto “ascender à salvação pelos atos” e, através do “amor, a renúncia transcende ao mesmo tempo que se interioriza”. Ou seja, existe a possibilidade de “sair do mundo pelo interior”, e é neste sentido de renúncia “interior” que podemos entender a busca dos devotos pela liberação.

A renúncia tratada aqui deve ser compreendida como um trabalho (esforço) mental contínuo que se traduz no viver a vida de yoga e que, por ser internalizada, tem na meditação ou contemplação seu alicerce. Weber (1993:170) enfatiza que a contemplação deve estar associada com um considerável nível de padrão de vida sistematicamente racionalizado; somente isto leva à concentração na dádiva da liberação. Sendo a racionalização apenas um instrumento para alcançar o objetivo da contemplação, consistindo em evitar interrupções causadas pela natureza e pelo meio social, a contemplação não se torna necessariamente um abandono passivo aos sonhos ou uma simples auto-hipnose, embora possa se aproximar desses estágios na prática; ao contrário, o caminho para a contemplação baseia-se em uma concentração bastante energética em certas verdades, as quais chegam a assumir uma posição central dentro da visão total do mundo e a exercer uma influência integrada sobre ela.

Entendo que viver uma vida de yoga se alinha com a noção de contemplação descrita por Weber, no sentido de o devoto analisado aqui ser alguém que faz, a todo momento, um esforço racional de concentração nas verdades ensinadas pelo Vedanta para manter um estado mais “meditativo” de equilíbrio mental, seja em qualquer circunstância, boa ou ruim, trazida pela ordem cósmica.

Considerações finais

Este artigo buscou compreender como os vedantinos negociam a complexidade e simultânea simplicidade do significado de ser “religioso”. Observamos que eles o fazem ao serem devotos ou yogis. Mas o que significa ser um devoto ou yogi para os vedantinos? Por um lado, acredito que este tipo de “comportamento” possa ser entendido como um tipo de resposta a uma mente reativa – uma tentativa de não reagir ao que a ordem traz, mas “agir”. O tipo de comportamento esperado baseia-se no pensar e discernir sobre como agir antes de qualquer ação a ser realizada. O que não significa deixar de agir, pelo contrário, mas agir de acordo com os critérios analisados e ponderados através do intelecto. Por outro lado, já que as situações da vida não são previsíveis e não existe um manual de como agir, nem mandamentos de como se deve ou não viver, trata-se de uma projeção bastante improvisada do Eu, junto a uma boa dose de intuição e subjetividade.

Sem dúvida não elaborei à exaustão o estilo de vida do grupo em seus menores detalhes. Embora tenha tentado apresentar o Vedanta, ele permanece ambíguo, um fato que é verdadeiro à sua estrutura. Ainda que o presente artigo tenha se baseado no tema da interação entre identidade e devoção e em como os interlocutores entendem a experiência religiosa, ressalto que, acima de tudo, se embasa em como eu entendi o olhar deles sobre o Vedanta.

O que Dumont propõe a respeito do devoto merece maior investigação sob a forma de uma atualização em relação a como o grupo se percebe enquanto “devoto”. Presumo que, quando Dumont (1992:332) indica que “todos podem se tornar indivíduos livres” ao se identificarem com “o Senhor”, ele dá uma pista para interpretarmos os significados de se tornar um devoto no caso dos vedantinos. Seria esta liberdade que Dumont descreve a mesma que os entrevistados consideram como seu “projeto” de vida: tornar-se “livre”, no sentido de estar livre da ignorância do samsara? Compreendi que, em certo sentido, é exatamente disto que trata a devoção do grupo estudado, o conceito de liberdade está sendo considerado sinônimo de libertar-se da ignorância que aprisiona, para, desta forma, poder sentir-se livre de fato; ou seja, se inicialmente o indivíduo vive um desencantamento e uma perda do sentido de viver, através do estudo de Vedanta, ele (o buscador) aos poucos vai “produzindo” um novo sentido para sua vida à medida que se transforma em devoto. Weber (1993:145, tradução nossa) explica o porquê desta “recuperação” do sentido da vida:

A solução formal mais completa do problema de teodiceia é a importante conquista da doutrina indiana do karma, a assim chamada crença na transmigração de almas. O mundo é visto como um universo de retribuição ética completamente conectado e independente. Culpa e mérito dentro deste mundo são infalivelmente compensados pelo destino nas sucessivas vidas da alma, as quais podem ser infinitamente reencarnadas em animais, humanos, ou até formas divinas. [...] O que pode aparentar, da perspectiva de uma teoria de compensação, como um sofrimento injusto na vida terrena de uma pessoa deveria ser considerado como uma reparação de pecado numa prévia existência. Cada indivíduo modela seu próprio destino exclusivamente, e no sentido mais rigoroso da palavra.

Tenho uma hipótese de que a devoção, para o grupo observado, parece surgir a partir de um primeiro momento bastante “racional”, no qual eles buscam o conhecimento do Vedanta enquanto uma filosofia baseada na autorreflexão e, quando esse ensinamento de alguma maneira se torna “assimilado”, abandonam a etapa inicial mais racional e passam por uma transformação mística e “contemplativa”, na qual percebem o “Eu” interior em sua dimensão de “sacralidade”.

A devoção religiosa no hinduísmo, para Weber (1958:187), sugere a “orientação de toda a vida da pessoa” e uma “obediência” incondicional a um deus ou redentor. Mas a pergunta que me indago no campo é a seguinte: será que os estudantes que se consideram devotos também orientam suas vidas desta forma incondicional? Como foi explicado, a confiança que demonstram em uma ordem cósmica, da qual o devoto participa, parece responder à pergunta. Weber (1958:184) prossegue nessa questão propondo que o devoto (ou yogi) se torna o “observador de suas próprias ações e de todos os processos psíquicos em sua própria consciência” e, desse modo, “emancipado do mundo”; ou seja, o yogi é aquele que, ao fazer a ação, se torna livre da ação e do samsara. O que Weber (1958:185) sugere é que, uma vez que o devoto tenha “tirado o véu da ignorância”, ele sabe que é “um com Brahman” e, dessa maneira, pode continuar a viver no mundo de ação ilusória sem colocar em risco sua liberação. O que significa que, a partir do momento em que o devoto entende sua identidade com Brahman, ele já está liberado da ignorância, não importando de qual maneira ele viva (tenha uma vida reclusa ou em meio à ilusão, o samsara). É neste sentido que entendo a devoção dos vedantinos observados tal qual uma emancipação, através de um processo mental de auto-observação, da ignorância que os aprisiona. Sugiro que a “conversão” do “tornar-se hindu” não deve ser entendida em seu sentido mais estrito, mas como um pertencimento a um grupo que possui uma identidade “hindu”, e, devido ao entendimento do significado desta identidade cultural-religiosa, seu pertencimento ao hinduísmo pode ser percebido mais como familiar do que totalmente exótico.

Surge, a partir do conteúdo analisado aqui, uma série de questões que merecem ser examinadas não apenas quanto ao grupo pesquisado, mas em relação a uma certa camada da sociedade, tal como os denominados “sem religião” e talvez, mais ainda, quanto aos chamados “espiritualizados, mas não religiosos”. Será que o conceito de “ser espiritualizado” para essa parcela da sociedade se assemelha ao entendimento do significado de “consciência” do hinduísmo? Existem diversas questões que necessitam aprofundamento em relação aos novos tipos de religiosidade característicos das sociedades complexas. A pesquisa dos estudantes de Vedanta, ao remeter a categorias como autorreflexão, racionalidade e desencantamento com os sistemas de valores, contribui para a compreensão de importantes e atuais questões como a perda de sentido e a consequente busca por sentido. O conceito nativo de devoção, que remete ao significado da identidade com Ishvara, serviu-me como um “nó” nas teias de significados, para usar a expressão de Geertz (1989), que me propus desvendar. Este conceito aproxima-se de categorias nativas como “consciência”, “liberdade” e “conhecimento”, que, sugiro, merecem ser inseridas no debate a respeito das novas formas de religiosidade no mundo moderno.


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Notas

1) Agradeço ao Prof. Luiz Fernando Dias Duarte e à Prof. Renata Menezes por suas valiosas sugestões a versões anteriores do texto. Este artigo é fruto da pesquisa de pós-doutorado realizada no Museu Nacional (UFRJ); agradeço também ao CNPq pelo auxílio financeiro.
2) Local de moradia ou convívio de pessoas que procuram o estudo relacionado à busca espiritual.
3) Vidya significa conhecimento e Mandir significa templo, o que então pode ser traduzido como “templo do conhecimento”.
4) Para informações mais tangíveis sobre o universo dos meus interlocutores, de onde eles vêm, o que mais os distingue como característica comum, e sobre a minha entrada no campo, ver Bastos (2016).
5) Entendo yoga como uma série de disciplinas espirituais que têm como objetivo último a liberação. Apesar de, atualmente, a palavra ioga com a vogal i no início ser utilizada em português, preferi utilizá-la iniciando com y, como é escrita em sânscrito ou inglês (ou nos vernáculos atuais da Índia), sendo, desta forma, fiel aos informantes que preferem se referir a essa palavra dentro do contexto de seus significados em sua língua original.
6) Gilberto Velho cunhou a expressão “aristocracia das camadas médias” ou a dos “nobres” justamente para especificar a complexidade dos “grupos de ethos” no caleidoscópio urbano contemporâneo brasileiro.
7) Encorporado aqui está traduzido do inglês, do sentido de embodiment. Entendo que a transmissão da tradição oral, como diz Schechner (2013), seja uma memória que fique encorporada.
8) Apesar de preferir categorias como religiosidade ou espiritualidade, uma definição de religião que se mostra adequada ao tema que estou tratando é a seguinte: “A religião nesse sentido não seria nem uma instituição particular ou sensibilidade nem um grupo de comparáveis crenças em algo especificamente espiritual ou sobrenatural, mas um tipo de ontologia, um modelo do mundo em sua essência e um modelo para existir dentro dele e entendê-lo de maneira ética e com sentido” (Lambek 2012:5, tradução nossa).
9) Aquilo que é a essência ou realidade última dos seres e do universo, também entendido como consciência.
10) Em suas palavras, no original: “they can make it through those religious teachings precisely because of this indifference regarding cultural differences” (Altglas 2007:235).
11) Segundo Weber (1958:156), os laços de devoção que vinculam um sagrado professor e conselheiro espiritual, o guru, a seus estudantes, eram, de acordo com a ética hindu, “tão extraordinariamente fortes” que essas relações devem realmente ter servido de base para quase todas as organizações religiosas na Índia.
12) Entendo devoção por uma relação que implica um vínculo duradouro e permanente de uma pessoa com um santo (ou deidade, no caso dos devotos vedantinos), “vínculo que envolve a fidelidade, mas não a exclusividade, pois é possível se combinar devoções” (Menezes 2004:256).
13) Apesar de estar participando dos cursos de Vedanta enquanto aluna, minha identidade como pesquisadora sempre esteve evidente para o grupo de forma simultânea.
14) Gilberto Velho (2013:106) explica que nas sociedades onde o desenvolvimento de ideologias individualistas é mais acentuado, as pessoas, ao possuírem múltiplos papéis, inventam projetos, que são tentativas sempre conscientes de “dar um sentido ou uma coerência a essa experiência fragmentadora”. Na sociedade moderno-contemporânea, explica o antropólogo, o indivíduo está exposto a “múltiplas experiências, contraditórias e eventualmente fragmentadoras”, mas, em meio a essas experiências fragmentadoras, a memória e o projeto, de alguma forma, “não só ordenam como dão significado a essa trajetória” (2013:65-66). O habitante da grande metrópole vive permanentemente em contato com “mundos” e regiões morais diferentes e, assim, está sempre recebendo estímulos e se deslocando entre ambientes e experiências variadas. Com isso, Velho (2013:107) esclarece que quanto mais exposto estiver o ator a “experiências diversificadas, quanto mais tiver de dar conta de ethos e visões de mundo contrastantes, quanto menos fechada for sua rede de relação ao nível do seu cotidiano, mais marcada será a sua autopercepção de individualidade singular”; a essa consciência da individualidade corresponderá uma maior elaboração de um projeto, pois este será estimulado e encontrará uma linguagem própria para expressá-lo.
15) Segundo Edward Sapir (1970:44), “não existe ilusão mais estranha – e é uma ilusão que quase todos nós compartilhamos – do que acreditar que, pelo fato de os instrumentos da vida serem hoje mais especializados e refinados do que jamais foram, pelo fato de a técnica viabilizada pela ciência ser mais perfeita do que qualquer coisa que o mundo já conheceu, segue necessariamente que estamos, na mesma medida, alcançando uma harmonia mais profunda com a vida, uma cultura mais profunda e mais satisfatória”.
16) A insatisfação com a religião como busca de uma forma de espiritualidade parece ser a resposta mais óbvia para esse desencanto, mas observo também a busca aqui analisada como crítica a aspectos que nada tem a ver com ela, e me pergunto qual seria o espaço que essa busca está preenchendo na vida das pessoas. Que se trata de uma busca pelo sentido da vida está claro, mas estou interessada em observar também o que significa o “impulso” dessa busca por sentido e não apenas o sentido em si. Outra via de análise seria relacionar tal impulso com a questão da cultura terapêutica – já que se cria um problema, esse problema precisa ser resolvido. E a questão que surge daí seria entender o problema, tendo em vista que ele não está dado.
17) Roger Bastide (1992:143) defende esta mesma posição ao se questionar sobre a crescente busca do sagrado: “Enfim, não se assiste hoje a uma nova busca apaixonada do sagrado entre os jovens – como se nossos contemporâneos, após um longo período de desenvolvimento do ateísmo, ou apenas de abandono à indiferença, se dessem novamente conta da existência, neles, de um vazio espiritual a preencher, e constatassem, a partir desse sentimento de vazio, que uma personalidade que não se enraizasse em algum tipo de entusiasmo sagrado seria, em definitivo, apenas uma personalidade castrada disto que constitui uma dimensão antropológica universal e constante para todo homem vivo: a dimensão religiosa?”
18) Que, em inglês, é conhecido como SBNR (spiritual but not religious).
19) Entendo conhecimento, assim como Foucault (1996:17), como o “resultado de um longo compromisso”, no sentido de que ele atua “diante dos instintos”: o conhecimento, assim, não faria parte da natureza humana; em suas palavras: “o conhecimento não é instintivo, é contra-instintivo, assim como ele não é natural, é contra-natural”.


Cecilia Bastos (ceciliagbastos arroba gmail.com)

Resumo:

Em busca do sentido da vida: a perspectiva de estudantes de Vedanta sobre “uma vida de yoga”

Este artigo analisa os significados de se tornar devoto, segundo a tradição de ensinamento Vedanta, e algumas implicações decorrentes deste tipo de experiência vivenciada pelos interlocutores. Baseia-se no trabalho de campo realizado junto a um grupo de estudantes de Vedanta não dualista que vive na cidade do Rio de Janeiro. Os significados desse aprendizado serão retratados, assim como sua implicação sobre o estilo de vida do grupo. Além disto, questões como trajetória do indivíduo ocidental, desencantamento espiritual e perda fundamental do sentido de viver serão discutidas, com a finalidade de análise a respeito do tipo de religiosidade praticado pelo grupo pesquisado e, em última instância, de contribuir para o entendimento do(s) significado(s) de ser “religioso” ou “espiritualizado” na modernidade.

Palavras-chave: antropologia urbana, religiosidade, espiritualidade, devoção



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