Eu sou aquele, em mim e fora também - Rodrigo Ferreira

A maneira de encontrar uma solução para o sofrimento humano proposto por várias linhas de crescimento pessoal é direcionando a busca do indivíduo para si mesmo, ou seja, para encontrar algo que está “dentro” de nós. Não é à toa que chamamos este método de “autoconhecimento”, um conhecimento de si mesmo ou em mim mesmo, sendo diferente de uma maneira em que eu buscaria as soluções fora de mim mesmo. Há duas questões importantes sobre este método: a idéia de que há uma internalidade em contraposição à uma externalidade; e o viés de ensimesmamento que o método de autoconhecimento pode trazer, não necessariamente como uma limitação de método, mas apenas como um ponto de atenção para aqueles que se aventuram desta forma.

Sobre algo que está dentro
É possível descrevermos nossas experiências em termos do espaço em que se encontram, seja interno ou externo à nós mesmos. Por exemplo, eu posso dizer que as minhas idéias são uma experiência interna na minha vivência, algo que está dentro de mim, e não fora de mim, disponível para que outras pessoas “vejam”. De fato uma colocação destas comunica algo e muitos entenderão esta idéia de algo que não está numa realidade compartilhada. Basicamente, quando digo que há algo dentro de mim, uso como referência delimitadora o meu corpo físico. Parece-me que as minhas idéias não estão disponíveis para além do meu corpo, a não ser que eu as coloque para fora através de algum tipo de expressão, como a fala. Pelo fato de que este “universo” interior estar disponível em todos os lugares onde meu corpo está, posso operar com esta maneira de falar sobre a realidade vivida em termos de uma realidade interior e outra que é exterior. Fora de mim estariam as minhas experiências que parecem estar disponíveis aos outros indivíduos, que não estão sempre presentes aonde eu for. A própria idéia de um “eu mesmo” é uma experiência que não parece estar disponível fora de mim, mas também internamente ao meu corpo e é justamente a idéia que parece congregar às outras que compõe uma internalidade em contraposição às experiências que “não são minhas”, “não são internas”.

A possibilidade do autoconhecimento e do extraconhecimento
Na minha vivência, é possível a experiência de insuficiência de si mesmo. A fome, por exemplo, denota a falta de algo em mim mesmo que preciso resolver através da busca e da agregação de objetos (alimentos) fora de mim mesmo. Além da fome, podemos tratar desta forma várias outras carências mais sutis, como o prazer sensorial, a vitalidade, a afetividade, a intelectualidade etc.

A reflexão sobre este sofrimento, com a intenção de se desenvolver um método de resolução, é muito antigo. Vemos indícios por toda parte, desde muitos milhares de anos como nos registros da literatura indiana dos Vedas. As soluções são diversas e a algumas delas, como as presentes ao final da literatura dos Vedas, nos textos chamados Upanishad, lançam mão da possibilidade de se resolver as carências através de uma busca em si mesmo, e não em objetos externos. Não no sentido de que a fome poderia ser saciada com o encontro de um alimento interior, mas a percepção de que há uma diferença entre a sensação física de falta e o sofrimento em função da falta, este mais ligado às experiências de ordem “mais interna”, como as emoções e as idéias. Os autores das Upanishad, bem como outros contemporâneos e conterrâneos, como o fundador histórico do Budsimo, empreendem reflexões e desenvolvem práticas que passam, de certa forma, a analisar a experiência do ser humano entre objetos e uma experiência destes objetos, onde a experiência dos objetos são a realidade que de fato lidamos e, assim, a realidade com a qual devemos tratar se quisermos resolver o sofrimento e encontrar uma liberdade real.

Esta direção interna não é trivial. Poder-se-ia buscar o suprimento dos sofrimentos vividos na satisfação através da interação motora-sensorial com objetos. Afinal, ao comermos, também temos um reflexo de saciez que é de ordem “interna”, e esta lógica, até certo ponto, de fato funciona. O movimento oposto ao autoconhecimento extamente este: o de buscar compreender o sofrimento vivido na descrição mais profunda dos objetos “externos” e desenvolver um método que, em termos também físicos e compartilhados pela experiência sensorial de todos, oferecesse uma forma de encontrarmos uma satisfação existencial, ou pelo menos maximizá-la ao máximo. A negação de um sujeto que experencia abre a estrada para um ciência das coisas, e uma maneira de manipularmos estas coisas para que nos saciem cada vez mais, por mais tempo.

O autoconhecimento
Ao perceber que o sofrimento é uma vivência de um complexo mente-corpo que interage com objetos e constrói para si uma realidade, e não que a realidade é a experiência aparentemente compartilhada por todos, como se houvesse um mundo exatamente definível e disponível igualmente à todos, aqueles que se lançaram num autoconhecimento encontraram novas possibilidades.

Para utilizarmos a maneira vedantina de colocar a questão do sofrimento, dizemos que o problema não tem solução, pois não há de fato um problema. Ao sofrermos pela impermanência das situações agradáveis da vida, evidenciamos um problema com a falta de eternidade e a permanência. E mais, evidenciamos um conhecimento, mesmo que obscuro, de “algo” eterno. Ora, se nos fiarmos apenas nos objetos dados pelo mundo, é evidente que algo eterno não existe. Porém, mesmo ao perceber a inexistência de uma qualidade livre do tempo, essa informação não resolve a dificuldade humana em lidar com a impermanência, e podemos continuar buscando prolongar ao máximo as coisas agradáveis e sofrer quando elas são substituídas por algo desagradável. No entanto, se eu considero a possibilidade de uma realidade interna, que é a realidade vivida, interligada mas distinta, da realidade aparentemente compartilhada por todos, posso desenvolver uma outra ciência, um campo de conhecimento que procura descrever a experiência como ela se apresenta. E neste campo é possível querermos algo ilimitado, mesmo que este objeto não possa ser fornecido pelo mundo. Ou seja, a busca por algo ilimitado passa a ser um dado concreto e passível de ser lidado diretamente, e abre uma estrada para o questionamento da realidade absoluta dos objetos “fora de mim”.

Eu mesmo enquanto um objeto e a realidade absoluta
A inquietação chave na resolução da questão do sofrimento pela sensação de limitação do sujeito é o paradoxo entre a constatação de que o mundo é sempre limitado, mas ao mesmo tempo eu tenho uma referência de ilimitação e busco uma qualidade ilimitada nos objetos e nas experiências (que também são objetos). Afinal, algo ilimitado eu devo conhecer, pois não há problema com aquilo que não conheço de alguma forma. O aparente pessimismo de Vedanta que constata a impossibilidade da vida nos fazer feliz só não afunda em depressão por permanecer fiel e dar realidade à experiência vivida. E vivemos uma referência de algo ilimitado, que, de algo forma deve existir.

Ao refletir sobre as limitações do mundo, percebemos que tudo é limitado por tempo, espaço e forma. Então se pensarmos em algo livre de limitações, deve ser algo livre do tempo, do espaço e da forma. Ora, estas limitações são justamente o que caracterizam a existência de um objeto em si, então o foco deve ser algo que não é objetificável. Em outras palavras, foca-se em algo que existe sempre, em todo lugar e, muito importante no movimento de autoconhecimento, é sempre o sujeito, nunca um objeto.

Quando falamos na investigação de uma realidade vivida, podemos falar em um método de observação desta realidade por meio de um processo meditativo. Isso não implica formalmente em sentar-se numa postura específica, fechar os olhos etc. mas lançar mão da capacidade inata que temos de experenciarmos a nós mesmos. Sendo a busca por algo que sempre é um sujeito, posso investigar, na minha experiência, quem é o sujeito. O sujeito passa a ser um objeto de conhecimento.

O sujeito não é eu
Ao observarmos nossa realidade vivida, percebemos diferentes funções que permitem a construção de uma experiência global da realidade. Temos experiências sensoriais através dos cinco sentidos, memórias, afetos idéias e, muito importante, a presença de algo que cria uma unidade, ou melhor, uma individualidade. É possível perceber que o “eu” é algo que surge tanto em termos de uma função congregadora de vários dados subjetivos quanto no “cenário amplo” que se cria como efeito desta congregação. Assim podemos falar de uma função de criação de eu, que permite, por exemplo, dizer que “este é um pensamento meu”, “esta é uma memória que me veio agora”. E também podemos fazer numa imagem de eu que se contrói como um conjunto vivido em função do trabalho desta congregação e que me dá diferentes qualidades em termos de memória, de idéias, emoções etc. Eu posso, assim, observar um eu como uma imagem. Tanto que posso até falar sobre ele, dizer a forma dele.

Quando se busca um sujeito que nunca é objeto, não podemos falar de um “eu”, pois o “eu” é algo que eu identifico, é um objeto, apesar de ser importante e fundante para a nossa realidade compartilhada socialmente. Em termos vividos, eu é apenas uma experiência, e toda experiência é também um objeto. É neste sentido que se aponta para uma referência além destes objetos, que permite, justamente, a experiência deles, inclusive do “eu”. Em sânscrito este sujeito além do eu é chamado de aatman, para designar um sujeito além da individualidade criada com base na criação do eu — este “eu”, em sânscrito, é chamada do ahamkaara, literalmente “fazedor de eu”.

Aatman não está dentro do corpo
A ironia do processo de autoconhecimento, pelos menos naquele proposto pelo Vedanta, é que o eu que eu busco em mim mesmo é, em última instância, uma referência livre das limitações do “eu”. Ou seja, é justamente o encontro de algo que não é limitado pela construção do eu e também não é limitado por nada mais, nem mesmo o corpo. O processo de autoconhecimento culmina com a integração desta referência de si mesmo que esta sempre presente, em qualquer lugar ou objeto, apesar de metodologicamente passar por um olhar para a realidade subjetiva, construída e sentida no complexo corpo-mente.

Enquanto um método, assim como qualquer outro, possui pontos de atenção. E um deles, que é a questão principal deste texto, é a tendência que se pode criar de um ensimesmamento, ou seja, de acreditar que a realidade interna é algo que existe de fato e de que esta referência livre de limitações que posso encontrar neste processo de autoconhecimento é algo que só existe dentro de mim, onde eu estou. Não é à toa que em Vedanta se trabalha com os termos aatman e também brahman para apontar à mesma “coisa” (que não é um objeto). Eu posso encontrar uma liberdade numa busca por um sujeito livre de limitações, um aatman. Mas de fato aatman é brahman, a própria realidade de todo o mundo. Do contrário aatman seria ainda algo limitado pelo meu corpo, idéias e individualidade. Quando alguém encontra em si aatman, encontra o mesmo sujeito que outro encontra e que sustenta toda a realidade dos objetos numa mesma realidade absoluta.

A transposição de aatman para brahman é fundamental para uma liberdade. Eu continuo um indivíduo que possui uma experiência individual, sempre, mesmo quando encontro uma referência ilimitada em mim mesmo. E esta liberdade será completa se eu perceber que esta referência não está em mim mesmo, apesar de poder ser experenciada desta forma. Não uma possibilidade de eu perder aatman ao me envolver com os objetos e com o que parece estar fora de mim. A referência de uma internalidade se presta para um caminho de autoconhecimento, mas deve ser questionada quando chegarmos ao limite da experiência interna. Afinal, eu sou aquele que é livre de limitações, dentro e fora de mim, também.

Retirado de www.vedanta.pro.br e republicado em www.YogaVaidika.com com a permissão do autor (Rodrigo Gomes Ferreira). Imagem de topo propriedade de Himalayan Academy, usada sob licença Creative Commons.

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