Isha Upanishad - Shri Aurobindo

ISHA UPANISHAD - conclusão e sumário
Traduzido de: Aurobindo, Shrî, 1972 - Trois Upanishads Ishâ, Kena, Mundaka, pp.105 - 115, Paris, Editions Albin Michel, Collections Spiritualités vivantes, Série Hindouisme
Tradutora: Teresa Ribeiro

Pelo estilo, o conteúdo e a versificação, a Isha Upanishad é um dos mais antigos escritos vedânticos. Ela é certamente posterior à Chhândogya, à Brihadâranyaka e talvez à Taittirîrya e à Aitarreya, mas ela é, sem dúvida nenhuma, a mais antiga das Upanishads versificadas existentes.

O pensamento upanishádico reparte-se naturalmente em dois períodos:
- no primeiro mantém-se ainda muito próximo das suas raízes védicas, reflecte o antigo sistema psicológico dos richis védicos e conserva o que poderemos chamar o seu pragmatismo espiritual;
- no segundo período, que é posterior, onde a forma e o pensamento se modernizam e se tornam mais independentes das origens e dos antigos símbolos, alguns dos principais elementos do pensamento e da psicologia védicos começam a ser omitidos ou perdem o seu significado e o seu fundamento anteriores; o Vedânta posterior, ascético e anti-pragmático começa a mostrar-se.

A Isha pertence ao primeiro grupo, o grupo védico. Ela encontra-se já face ao primeiro problema que consiste em reconciliar a vida e a concepção humanas com a concepção monista; a ampla solução que ela oferece desta dificuldade é um dos pedaços mais interessantes da literatura vedântica. É a única Upanishad que ofereceu dificuldades quase insuperáveis ao ilusionismo e anti-pragmatismo de Shankara. Por essa razão, um dos maiores discípulos do mestre riscou-a mesmo da lista das Upanishads que fazem autoridade.

O PRINCÍPIO DA ISHA UPANISHAD
O princípio que a Isha segue, do início ao fim, é a reconciliação, sem meias medidas, de extremos que não admitem, eles mesmos, qualquer compromisso. Mais tarde, o pensamento socorre-se de uma série de termos: o mundo, a fruição, a ação, o múltiplo, o nascimento, a ignorância e atribui-lhes uma posição mais ou menos secundária, enquanto exalta a série contrária: Deus, a renúncia, o quietismo, o único, a cessação dos nascimentos, o conhecimento, até ao momento em que esta corrente de pensamento atingiu como, ponto culminante, o ilusionismo e esta ideia de que a existência no mundo é uma armadilha, um fardo desprovido de sentido que a alma se impôs inexplicavelmente a si própria e que deve ser rejeitado tão depressa quanto possível. Uma tal ideia devia chegar a cortar brutalmente o nó do grande enigma.

A Isha Upanishad, pelo contrário, tenta agarrar as duas extremidades do nó, desatá-las e colocá-las uma ao lado da outra numa libertação que lhes dará, ao mesmo tempo, o seu verdadeiro lugar e a sua verdadeira relação. A Isha não quer nem atenuar nem subordinar indevidamente qualquer dos extremos, embora reconheça que um depende do outro. A renúncia deve ser levada ao extremo, mas a fruição igualmente deve ser também integral. A ação deve ser completa e sem restrição mas, por outro lado a alma deve gozar, relativamente às suas obras, de uma liberdade completa. A unidade total e absoluta é a finalidade, mas este absoluto deve ser levado ao seu termo supremo, fazendo entrar nele toda a infinita multiplicidade das coisas.

Este escrúpulo é de tal maneira grande na Isha Upanishad que, no seguimento da sua expressão na fórmula: ”pela ignorância tendo transposto a morte, pelo conhecimento ele frui da imortalidade”, a vida no mundo podendo ser interpretada como um simples preliminar de uma outra existência no além, ela restabelece imediatamente o equilíbrio invertendo a ordem numa fórmula paralela: “pela dissolução tendo transposto a morte, pelo devir ele goza da imortalidade” fazendo, assim, da vida em si mesma, o campo da existência imortal que é a finalidade e a aspiração de toda a vida. Nesta conclusão, a Isha está de acordo com o antigo pensamento védico segundo o qual todos os mundos, a existência e a não-existência, a morte, a vida e a imortalidade estão presentes aqui mesmo, no ser humano encarnado, aí estão em curso da evolução, aí são realizáveis para que se possa possuí-las e para que se possa fruí-las e não exigem para isso que se renuncie à vida e à existência corporais. Este pensamento jamais desapareceu inteiramente da filosofia indiana, mas ele tomou uma posição secundária e não mais é admitido senão de uma forma acessória, sem força suficiente para atenuar fortemente esta afirmação, cada vez mais enérgica, de que a extinção da existência no mundo é a condição da nossa liberdade e a única finalidade que é para nós sábia e digna de esforço.

OS OPOSTOS
Os pares de opostos que são tomados e resolvidos pela Upanishad, uns após outros são, pela ordem em que aparecem:
1º O Senhor consciente e a natureza fenomenal.
2º Renúncia e fruição.
3º Acção na natureza e liberdade da alma.
4º O Brahman único e estável e o movimento múltiplo.
5º Ser e devir.
6º O Senhor activo e o akshara Brahman indiferente.
7º Vidyâ e avidyâ.
8º Nascimento e não nascimento.
9º Obras e conhecimento.

1º DEUS E A NATUREZA
A natureza fenomenal é um movimento do Senhor consciente. A finalidade deste movimento é criar formas da Sua consciência em acção, formas nas quais ele pode habitar como alma única em múltiplos corpos e fruir da multiplicidade e do movimento em todas as suas relações(1).

2º FRUIÇÃO E RENÚNCIA
A fruição real e integral de todo este movimento e desta multiplicidade na sua verdade e na sua infinitude exige uma renúncia absoluta, mas o que é exigido é uma renúncia absoluta ao princípio do desejo que tem por base o princípio do egoísmo e não uma renúncia à existência no mundo(2). Esta solução é condicionada pela ideia de que o desejo é unicamente uma deformação egoísta e vital do divino ânanda, ou alegria de ser, de onde nasceu o mundo; assim que se arranca o ego e o desejo, ânanda volta ser o princípio consciente da existência. Esta substituição é a essência da passagem da vida associada à morte para a vida na imortalidade. Pela fruição da imortalidade entende-se a fruição – fundada sobre a unidade de tudo no Senhor – da alegria infinita da existência que foi libertada do ego.

3º ACÇÃO E LIBERDADE
As acções não são incompatíveis com a liberdade da alma. O homem não está ligado pelas obras; isto não acontece senão em aparência. Ele deve recuperar a consciência da sua inalienável liberdade, recuperando a consciência da unidade no Senhor, unidade em si-mesmo, unidade com toda a existência3. Isto feito, a vida e as obras podem e devem ser aceites em toda a sua plenitude, porque a manifestação do Senhor na vida e nas obras é a lei do nosso ser e a razão de ser da nossa existência no mundo.

4º A QUIETUDE E O MOVIMENTO
Que dizer então da quietude do Ser supremo; como é que o facto de persistir no movimento é compatível com esta quietude na qual se reconhece geralmente uma condição essencial da Beatitude suprema?

Tanto um como outro, a quietude e o movimento são um só Brahman e a distinção que se faz entre eles não é senão um fenómeno da nossa consciência. Acontece o mesmo com as ideias de espaço e de tempo, de longe e de perto, de subjectivo e de objectivo, de interior e de exterior, de mim e do outro, do um e do múltiplo. Brahman, existência real é tudo isto para a nossa consciência, mas em si ele é/está inefavelmente acima de todas estas distinções práticas. O movimento é um fenómeno da quietude e a quietude em si-mesma pode ser concebida como um movimento demasiado rápido para que os deuses, quer dizer, as nossas diferentes funções de consciência, possam segui-lo na sua natureza real. Não é, no entanto, um movimento formal, espacial, temporal, mas somente um movimento da consciência. O conhecimento vê tudo isto como não fazendo senão um, a ignorância divide e cria oposições lá onde elas não existem, lá onde há simplesmente relações/proporções de uma consciência em si mesma. O ego no corpo diz: “eu estou no interior, todo o resto está no exterior; e naquilo que é exterior, isto está próximo de mim no tempo e no espaço e aquilo está afastado”. Tudo isto é verdadeiro nas relações actuais, mas em essência tudo é um só movimento indivisível de Brahman, não um movimento material, mas uma maneira de ver as coisas na consciência única.

5º SER E DEVIR
Tudo depende daquilo que nós vemos, como consideramos a existência, conforme a maneira como a nossa alma vê as coisas. Ser e devir, o um e o múltiplo, são os dois verdadeiros e os dois a mesma coisa. O ser é um, os devires são numerosos; mas aquilo significa simplesmente que todos os devires são um único Ser que se coloca diversamente no movimento fenomenal da sua própria consciência. É-nos preciso ver o ser único, mas nós não cessamos de ver os devires múltiplos, porque eles existem e são compreendidos na visão que Brahman tem de si-mesmo. Nós devemos somente olhar com conhecimento e não com ignorância. Temos que compreender que o nosso verdadeiro Self é o único Brahman imutável e indivisível. Nós devemos ver todos estes devires como desenvolvimentos no movimento no nosso verdadeiro Self e este Self como o único habitante de todos os corpos e não somente o nosso.

Nas nossas relações com este mundo, nós devemos estar conscientes do que somos na realidade: este Self único que se torna tudo o que observamos. Todo o movimento, todas as energias, todas as formas, tudo o que se passa, nós devemos vê-lo como pertencendo ao nosso Self único e real em muitas existências, como o jogo da vontade, do conhecimento e da alegria do Senhor na Sua existência no mundo.

Seremos então libertados do egoísmo, do desejo e do sentido da existência separada, libertados por consequência de todo o desgosto, de toda a ilusão, de todo o recuo medroso; porque todo o desgosto provém de que o ego evita medrosamente os contactos da existência, do sentido de medo, de fraqueza, de necessidade, de aversão… que o ego tem. E isto é proveniente por sua vez, da ilusão da existência separada, do sentido de ser “o meu ego pessoal” exposto a todos estes contactos com tantas coisas que não são eu. Desembaracem-se disso, vejam em todo o lado a unidade, sejam o Um que se manifesta em todas as criaturas, o ego desaparecerá; e desaparecerá também o desejo nascido do sentimento de não ser isto ou de não possuir aquilo; a alegria livre e inalienável que o Um tem em relação à sua própria existência substituirá o desejo e o seu cortejo de satisfações e de descontentamentos(4). A imortalidade vos pertencerá, a morte nascida da divisão será vencida.

6º O BRAHMAN ACTIVO E INACTIVO
O Brahman activo e o Brahman inactivo são simplesmente dois aspectos do único Self, do Brahman único que é o Senhor. É ele que se diversifica por todo o lado no movimento. Da sua existência inactiva ele permanece livre de toda a modificação. A inacção é a base da acção e existe na acção; é a sua liberdade de tudo aquilo que ele faz e o seu devir(5) e, em tudo ele age e se torna. São os polos positivo e negativo de uma única consciência indivisível. Nós englobamos os dois numa quietude e num movimento que são inseparáveis um do outro e dependem um do outro. A quietude existe relativamente ao movimento e o movimento relativamente à quietude. Brahman está para além dos dois. Este ponto de vista é diferente daquele segundo o qual há uma identidade entre o movimento e a quietude, que são um em realidade; exprime preferencialmente, a sua relação na nossa consciência, uma vez que os admitimos como uma necessidade prática desta consciência. É evidente que ao tornar-se um com o Senhor, nós partilharíamos também esta existência consciente, una na sua dualidade(6).

7º VIDYA E AVIDYA
O conhecimento do Um e o conhecimento do múltiplo são um resultado do movimento da consciência única, que vê todas as coisas como sendo Uma na sua ideia-verdade, mas diferencia-as na sua mentalidade e no seu devir formal. Se o mental (manîshî) se absorve em Deus como devir formal (paribhu) e se separa de Deus na ideia verdadeira (Kavi), então ele perde vidyâ, o conhecimento do um e não tem senão o conhecimento do múltiplo que neste caso, não é mais conhecimento, mas ignorância avidyâ. É a causa do sentido do ego separado.

Avidyâ é admitida pelo Senhor no mental (manîshî) a fim de desenvolver ao máximo as relações individuais em todas as possibilidades da divisão e das suas consequências, e em seguida, por estas relações individuais, regressar individualmente ao conhecimento do Um em tudo. Este conhecimento subsistiu sempre e nunca foi anulado na consciência do verdadeiro vidente ou Kavi. Este vidente em nós situa-se por detrás do pensador mental; este último, assim isolado, deve triunfar da morte e da divisão, por uma experiência que ele persegue enquanto habitante individual, e finalmente recuperar o estado de imortalidade pelo conhecimento reunido do um e do múltiplo. É a nossa verdadeira via; nós não temos nem que nos consagrar exclusivamente à vida de avidyâ, nem de a rejeitar inteiramente por uma absorção imóvel no Único.

8º NASCIMENTO E NÃO NASCIMENTO
A razão deste duplo movimento do Pensador é que nós somos destinados a realizar a imortalidade no nascimento. O Self é uniforme e não morre; possui sempre a imortalidade em si mesmo. Ele não tem necessidade de descer na avidyâ e no nascimento para obter esta imortalidade do não-nascimento porque ele possui-a sempre. Ele desce a fim de a realizar e de a possuir como o Brahman individual no jogo da existência no mundo. Ele aceita o nascimento e a morte, assume o ego, depois, dissolvendo o ego ao recuperar a unidade, ele realiza-se a si-mesmo como o Senhor, o Único, e realiza o nascimento como um simples devir do Senhor no ser mental e formal. Este devir é agora regido pela visão verdadeira do vidente; isto uma vez cumprido, o devir não é mais incompatível com o ser, o nascimento torna-se um meio – e não mais um obstáculo – para que o senhor desta habitação formal frua da imortalidade(7). É isso que devemos fazer, e não ficar para sempre no encadeamento do nascimento e da morte, nem fugir do nascimento para chegar a um não-devir absoluto. A servidão não resulta do acto físico do devir, mas da persistência do sentido ignorante do ego separado. O mental cria a cadeia, e não o corpo.

9º OBRAS E CONHECIMENTO
A oposição entre as obras e o conhecimento existe enquanto as obras e o conhecimento têm somente o carácter mental egoísta. O conhecimento mental não é o verdadeiro conhecimento; o verdadeiro conhecimento é aquele que repousa sobre a verdadeira visão, sobre a visão do vidente, de Sûrya, do Kavi.

O pensamento mental não é conhecimento; ele é uma máscara de ouro colocada sobre a face da Verdade, da Visão, da Ideação divina, da Consciência-verdade. Quando esta máscara é retirada, a visão substitui o pensamento mental, e a ideação-verdade que abrange tudo, mahas, véda, drishti, substitui a actividade mental fragmentária. O verdadeiro buddhi (vijnâna) emerge da acção dispersa de buddhi que é a única possibilidade sobre a base do mental sensorial, de manas. Vijnâna conduz-nos ao puro conhecimento (jnâna), à pura consciência (chit). Aí realizamos a nossa inteira identidade com o Senhor em tudo, mesmo nas raízes do nosso ser.

Ora em chit, vontade e visão não fazem senão um. Por consequência, em vijnâna ou ideação-verdade, que jorra luminosamente de chit, vontade e visão são igualmente combinadas e não são mais separadas uma da outra como no mental. Quando temos a visão e vivemos na consciência-verdade, a nossa vontade torna-se, portanto, a lei espontânea da verdade em nós; conhecendo todas as suas acções, assim como os seus sentidos e o seu objectivo, ela conduz a direito à finalidade humana, que foi sempre a fruição de ânanda, a alegria do Senhor na sua própria existência, o estado da imortalidade. Nas nossas acções também, nós tornamo-nos um com todos os outros seres, e a nossa vida desenvolve-se numa representação de unidade, de verdade e de alegria divina, sem mais seguir o caminho tortuoso do egoísmo, cheio de divisão, de erros e de armadilhas. Numa palavra, nós atingimos a finalidade da nossa existência, que é a de manifestar em si-mesmo, seja na terra num corpo terrestre e contra a resistência da matéria, seja noutros mundos do além, seja penetrando para além dos mundos, a glória da vida divina e do ser divino.

Notas:
1) É também o ponto de vista da Bhagavad-Gîta e é actualmente aceite de uma forma geral.
2) É ainda o ponto de vista central da Bhagavad-Gîta que, no entanto, admite também a renúncia à existência no mundo. A tendência geral do pensamento vedântico seria de aceitar, como essencial, a renúncia ao desejo e ao egoísmo, mas defende que a renúncia ao egoísmo significa a renúncia a toda a existência no mundo porque o Vedanta vê a causa desta existência no desejo e não em ânanda.
3) Esta verdade é também geralmente admitida, mas não acontece o mesmo com a conclusão que dela se tira.
4) Segundo a opinião corrente admitia-se tudo isto, mas duvidava-se que fosse praticamente possível manter simultaneamente este estado de consciência e o nascimento no mundo.
5) Devir - termo com o qual se designa o processo de ser, relativamente ao qual se incluem todos os tipos de mudanças, (movimento, alteração, geração, corrupção) e que está associado a expressões como ”chegar a ser”. A partir da filosofia grega clássica, o falar do ser como devir" marca a oposição de uma concepção do ser como algo estático e costumam considerar-se as posições defendidas por Heráclito e Parménides como representativas de uma e outra posição, respectivamente. Entendeu-se, pois que o “devir” se oporia ao “ser”, no sentido de que o processo de ser ou de “chegar a ser” algo, se opõe à imobilidade do ser. A afirmação do devir, do ser como processo, identifica-se com uma concepção dinâmica da realidade, da qual se costuma considerar Heráclito de Éfeso como o seu mais representativo defensor. (Nota da tradutora extraída de http://www.webdianoia.com/glosario/display.php?action=view&id=82&from=action=search%7Cby=D em Junho de 2014)
6) Segundo a opinião corrente, o jîva não pode existir nos dois ao mesmo tempo; ele dissolve-se na quietude e não na unidade com o Senhor na inacção.
7) É o obstáculo das filosofias vulgares, impregnadas que são da ideia que o mundo é ilusão, mesmo se elas não seguem até ao fim o mâyavâda. O nascimento, diriam elas, é um jogo da ignorância: ele não pode subsistir com o conhecimento completo.

Mensagens populares