Supta Vīrāsana - Ricardo Alarcão

Supta Vīrāsana

Ao praticar Yoga com um método Iyengar, ganhei o hábito de iniciar algumas sessões com esta postura, a do herói deitado. De início sempre com o material didático de suporte habitual desta linha de ensino, os cintos e bolsters (almofadas longas), sem música ambiente nem incenso. Tenciono aqui defender este hábito, equacionado por assim dizer, àquilo que é justo e guarda silêncio.

A confiança na professora, e outros tantos fatores de que me fui apercebendo, permitiam suportar a intensidade que a permanência na postura ou āsana provoca, apesar de parecer estar inerte. E estava. E assim ficava até indicação para desfazer a postura.

Nada me parece provocar uma perceção mais direta da energia que flui no próprio corpo, este que permanece inerte enquanto parcela do que sou. Tudo o resto se movimenta. Um movimento que perdura até hoje quando dou indicações para iniciar uma sessão nesta postura, de preferência sem apetrechos, e poucas explicações. A constatação é a de que uma explicação fornecida para executar a postura parece torná-la acessível, no sentido em que se torna possível teorizar acerca dos seus modos de executar, os sistemas anatómicos envolvidos, quando aplicar a postura numa sessão e porquê, assim como os seus efeitos. Mas sabemos também que o binómio corpo-mente não permite essa facilidade. Precisamente o verter da atenção sobre a experiência do āsana torna fascinante a sua aplicação, porque entram em jogo as subtilezas do entendimento, e que fazem o aspeto denso ou físico retroceder até à quase insignificância.

Aliás, alguém que se debruce sobre o tema da explicação cedo se dá conta que explicações são uma ilusão. Como se diz, acabamos sempre por apenas descrever, com maior ou menor acuidade, aquilo que nos prende a atenção. Neste sentido proponho que o leitor me acompanhe numa espécie de meditação, tendo como foco este āsana.

Sugiro que sigamos a sequência de passos estipulados na tradição, o aspeto técnico da meditação descrita pelo sábio Patañjali, de concentração unívoca sobre o assunto seguida de uma contemplação do que surge. E surgem sensações físicas, sequências de sentimentos e de pensamentos a disciplinar. Podemos até equacionar estas facetas ao que é reconhecido como sendo os três vetores constituintes da personalidade e refletidos no sistema social, enquanto fatores económicos, de urbanidade e de cultura. Mas comecemos pelo princípio.

Começo pelo facto de que, conhecendo as minhas tendências naturais, de experiência própria e também através de inquéritos formatados de medicina Indiana, o Ayurveda, utilizados para determinar o biótipo ou dosha predominante, cria-se a empatia com esta postura pelo desafio proporcionado. No caso trata-se de uma predominância de características equiparadas ao fogo, correspondentes ao designado Pitta. Nesta categoria, é sabido o gosto pela competição e aplicação da força de vontade e, quando entendo haver necessidade de alimentar estas facetas, aplico-me.

Claro está que ao dar indicações numa sessão, tenho o cuidado de as transmitir como sugestões, a moderar pelo próprio praticante cujo dosha pode distanciar-se do meu. Invocam-se os valores da gentileza e da autenticidade, a integrar a prática individual. E daqui espera-se a integridade, e a desejável retidão do praticante para com quem se propõe guiar a prática, para evitar alienações e juízos de valor precipitados. A valorização será tanto maior quanto haja conhecimento direto dos benefícios proporcionados pela prática. Em primeiro lugar, os benefícios de abertura da ossatura da caixa torácica em conjunto com o alongamento da musculatura da parede abdominal e consequente criação de espaço visceral permitem uma higienização ou purificação, o designado Kriyā Yoga ou parte dos Ṣaṭkarma, recomendável antes de qualquer prática física. Estas sensações, de melhoria das funções respiratórias e digestivas, podem ser percecionadas quando permitimos ao corpo tempo adequado na postura para se ajustar, ou seja, para se libertar de vícios a que por vezes o obrigamos, ainda que inadvertidamente.

A partir daqui é o salve-se quem puder! Ficamos sujeitos aos sentimentos e surge o desafio da conquista da postura de forma corajosa e alegre, com o abandono do corpo às sensações ou, e no limite extremo, com o abandono da prática, aos medos e tristezas.

Concretamente trata-se do desenrolar da sequência lógica dos sentimentos conforme regista um outro tratado nesta tradição Hindu, que codificou o histrionismo, o Nāṭyaśāstra. Em termos folclóricos e provisoriamente, pela natureza da conjetura que entretenho, refiro-me aos assaltos das servas ou oito consortes do divino Ganesha, os oito poderes feéricos ou siddhis a que alude Patañjali, com a advertência de que não devemos ceder a este abismo tentador se queremos prosseguir na via. Muito se poderá dizer acerca deste tema, e daí o aspeto ilimitado da via do Yoga.

Ou seja, sobre esta base iniciam os percursos soteriológicos individuais, a via da liberdade e, no caso, através da inércia física. Por aqui também podemos determinar a qualidade do praticante, ou o seu uso do bom senso – leia-se prudência e temperança. A confiança no método do Yoga e domínio sobre todas as sensações e sentimentos que nos perseguem em qualquer propósito na vida ficam aqui encapsulados. Até que o juízo intervém, para permitir avançar.

Mas espere. Quem permite? Qual a origem do juízo que se sobrepõe a sentimentos que deveriam determinar que a permanência se arrasta para além do razoável? Qual o destino que se abre, cujo modelo parece deter? De onde vem o sofrimento ou o que é a dor são campos de investigação que percorremos, e com o sentido de urgência que esta prática exige, contundentemente. Porquê o sacrifício? Quem se desafia desta forma, pretende a transformação e aceita o desfio.

O desafio último a que me refiro será o intelectual, de resolução de um enigma como os lançados por Mestre Japoneses numa espécie de incentivo à contemplação, o Koan, utilizados na prática de meditação chamada Zazen. Diz-se então que as duas posturas estremadas do āsana yoga são a postura em sentido, Samasthiti, e a postura deitada, śavāsana. Esta postura do herói será uma daquelas que se entremeia pela forma como suscita estados de vigília e de sono em simultâneo. Será indicativa de como se resolvem realisticamente as sensações de vida e de morte das diversas facetas do que somos e que detemos como dispositivos nesta existência.

Daí o seu fascínio.

Está aí alguém ainda? Alguma pessoa interessada numa descrição acerca de alongamento dos quadríceps?

Boa prática.
Namaste. Gassho.

Guru zen (Ricardo Alarcão), Janeiro 2016.

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